“Multitudes ventríloquas”

O último livro de Michael Hardt e Toni Negri “Multitude” (Debate, Madrid, 2004) continua a reflexão empreendida em “Império”. Os autores respondem a algumas críticas e objecções, aclaram possíveis mal-entendidos e precisam o seu pensamento. “Multitude” compõe-se de três grandes partes: a que trata da noção de multitude, faz de pivot entre uma primeira parte dedicada à guerra e uma terceira, prospectiva, dedicada à democracia. Artigo de Daniel Bensaïd.


Este livro confirma que há importantes pontos de convergência e de encontro: sobre a importância concedida ao estado de guerra permanente na determinação da situação mundial, sobre a atenção prestada à questão da propriedade e às contradições exacerbadas entre a socialização do trabalho (e, em particular, do intelectual e imaterial) e a apropriação privada, sobre o fio condutor que constitui a questão democrática em qualquer projecto de emancipação. Não podemos abordar, nos limites deste artigo, a discussão de todas estas questões. Limitar-nos-emos à discussão sobre a noção de multitude, em torno da qual se articula a problemática dos autores.

Popularizada por Paolo Virno(1) assim como por Michael Hardt e Toni Negri, a noção de multitude tem um grande eco na América Latina e em alguns países europeus. O êxito deve-se sem dúvida ao seu acerto descritivo. O termo parece recolher bem a diversidade dos movimentos populares, reflectindo a amplitude dos fenómenos de exclusão (e exemplo emblemático são os piqueteiros argentinos) e a extensão do trabalho precário e informal, mas também a preocupação de muitos movimentos sociais por fazer valer os seus interesses específicos, sem serem afogados na abstracção de um hipotético interesse geral ou subordinados a uma “contradição principal” que os converta em “secundários”: movimentos feministas, ecologistas, homossexuais e também associações de desempregados, camponeses, sem terra, cocaleros bolivianos, movimentos indígenas do México ou do Equador, etc.

Paolo Virno estabelece um vínculo, que não é só simultaneidade, entre as manifestações de Seattle ou de Génova e os “cazarolazos” de Buenos Aires(2), que mostram a erupção da multitude como novo sujeito da emancipação. São uma importante consequência do final da fábrica fordista e da integração massiva da comunicação intelectual e linguística como recurso produtivo. Desaparece a distinção entre produtor e cidadão, entre esfera privada e esfera pública, em favor de um espaço comum misto. Desta indiferenciação pós-moderna surge a multitude. Seattle, Génova ou Buenos Aires expressam novas formas de vida e de subjectividade, colocando-nos ante “o desafio de inventar novas formas políticas” de democracia não representativa (a não confundir, precisa Virno, com as formas simplificadas de democracia directa): foros de cidadãos, reapropriação pela multitude dos saberes e poderes confiscados pelos aparelhos burocráticos de Estado.

Há também outra razão para a propagação da noção de multitude e o interesse que suscita nos movimentos sociais: a sua indeterminação conceptual torna o seu manejo muito mais cómodo se permanece teoricamente flutuante e ambíguo. Tentaremos aclarar aqui alguns aspectos deste debate, com a prova das suas possíveis implicações estratégicas.

Uma categoria filosófica?

Não me deterei no aspecto sociológico da controvérsia. As precisões de Hardt e Negri em “Multitude” e as de Virno na sua “Gramática da multitude” despejam algumas dúvidas e mal entendidos. Os três afirmam claramente que o uso do termo multitude não significa em absoluto o desaparecimento do proletariado, nem sequer da classe operária industrial. Coloca só o acento no relativo declive desta última em favor de uma nova hegemonia, a do (impropriamente) chamado por Hardt e Negri “trabalho imaterial”. Não se trata de uma hegemonia numérica e quantitativa, nem tão pouco o foi a hegemonia nascente do trabalho industrial no século XIX numas sociedades muito agrárias, mas do auge de uma minoria sociológica cuja função ascendente impregna e determina o conjunto das relaciones sociais. Saindo do estreito marco da produção, este trabalho cognitivo, “afectivo”, “relacional” ou “bio-político”, encobre um “enorme potencial de transformação social positiva”, ao produzir directamente relações sociais.

A discussão não consiste numa disputa estatística (ainda que não fosse inútil, dadas as extrapolações superficiais a que dão lugar as metamorfoses do trabalho), mas na avaliação desta nova hegemonia nascente, característica da época imperial, a dominação absoluta do capital sobre a vida e a entrada na era bio-política, anunciada por Foucault. Mesmo que o facto de colocar nome tenha a sua importância, há que evitar cair numa querela terminológica. Pela minha parte, mantenho que estas precisões, afastando-se das fantasias da moda sobre o desaparecimento dos antagonismos de classe, podem ser explicadas em termos de uma extensão do proletariado (no sentido amplo e inicial do termo em Marx), incluso de uma “proletarização do mundo”, uma vez superados os equívocos de uma teoria de classes reduzida à esfera da produção ou da circulação(3) e extraídas todas as consequências do lugar que dá “O Capital” ao inconcluso capítulo sobre as classes ou, no final do livro, ao processo de reprodução de conjunto do capital. Este processo deve ter em conta o papel do estado, da família, da escola, do habitat, na reprodução. Neste sentido, Marx e Engels (em particular na sua “A situação da classe trabalhadora em Inglaterra” podem ser considerados em alguns aspectos como precursores da bio-política foucaultiana.

Para evitar um falso debate há que assinalar que, segundo os seus próprios promotores, “a noção de multitude não desloca o conceito de classe” (Paolo Virno), que “a multitude é um conceito de classe” num “sentido bio-político”, e que na realidade trata-se de “reactivar o projecto político da luta de classes” (Hardt e Negri). Registamos: a multitude não substitui as classes. Nos autores marcados pelo “obreirismo” italiano dos anos 70, o deslocamento terminológico pretende provavelmente exorcizar uma concepção obreirista reducionista do proletariado. Não é problema nosso. Desde as primeiras páginas, Hardt e Negri definem Multitude como “um livro filosófico”. A aposta da sua inovação conceptual situa-se sobretudo no terreno conceptual da filosofia e não no da sociologia. Seguindo Virno, precisam que “multitude” não é uma noção alternativa à de classe, mas sim às de povo (dotada de uma homogeneidade imaginária), massas (indiferenciadas apesar do uso do plural) ou classe operária (reduzida à classe operária industrial). Os três destacam a sua oposição à categoria de povo, estreitamente associada à soberania, no caso de Hobbes, e à vontade geral, no de Rousseau. Apesar dos seus distintos pressupostos antropológicos, têm em comum o espectro de um povo fundidor, unitário e indivisível, à semelhança da monarquia absoluta ou da República “una e indivisível”, quer dizer, uma concepção orgânica do corpo do povo no lugar do corpo do rei. Desde “DE CIVE”, de Hobbes, o advento do povo no discurso político marca o passo do estado da natureza ao estado civil, ou da simples agregação mecânica à associação orgânica, fundadora de um corpo novo, não redutível à simples reciprocidade dos contratos. Hegel insiste também em que “o Estado não é um contrato”, e ainda menos a soma liberal dos contratos privados.

O conceito de povo é um dos fios condutores do paradigma político da modernidade. “Dói à pessoa pública o nome de povo, não o de multitude”, sublinha Hobbes, daí a “diferença entre esta multitude que eu chamo povo, que se governa regularmente, que compõe uma pessoa civil e que só tem uma vontade, e essa outra multitude que é como uma hidra de cem cabeças e que só pode pretender, na república, a glória da obediência”. O povo regressa à substância propriamente política da ordem estatal centralizada, em oposição à multitude, que representa uma desordem “de cem cabeças” (rizomático), uma hidra que há que disciplinar e submeter à glória da obediência passiva. Segundo esta perspectiva, o retorno do povo à multitude seria uma recaída para o estado de natureza pre-política e a guerra de todos contra todos.

Não sejamos quezilentos sobre a atemporalidade filosófica desta concepção de povo insistindo nas suas evoluções históricas e nas inflexões de uso seu. Mas o povo de Michelet, aberto às diferenciações e aos antagonismos sociais, já não é “uno e indivisível” (só ameaçado de divisão pela sedição interna das facções ou pelos complots externos do estrangeiro), constitutivo da soberania nacional. Também se poderia citar, com um pouco de fantasia, o presidente Mao que, longe de fazer do povo um monólito político, convidava a tomar em consideração “as contradições no seio do povo”.

Admitamos pois, para evitar uma estéril querela de palavras, a multitude proletária ou o proletariado mundializado como figuras do proletariado na época da mercantilização mundializada, da dominação generalizada do capital sobre todas as esferas da vida social e privada, da extensão do controlo bio-político sobre a vida. Nada garante, sem dúvida, que esta “multitude” insubmissa seja um mais além de povo e não um mais aquém pré-político, retornando à plebe neopopulista ao gosto de Solzhenitsyn. Prefigurando a inquietude de Hannah Arendt ou de Walter Benjamin perante as consequências totalitárias da decomposição das classes em massas, Hegel já antevia o desastre duma crise que ia conduzir ao renascimento das plebes do Império, ávidas tão só de pão (consumo) e de jogos (televisionados): “Se uma grande massa desce abaixo do mínimo de subsistência que se considera necessário para um membro da sociedade, perde-se o sentimento do direito, da legitimidade e da honra de existir pela sua própria actividade e pelo seu próprio trabalho, assiste-se à formação de uma plebe, o que leva aparelhada uma maior facilidade para concentrar em poucas mãos umas riquezas desproporcionadas”(4).

O próprio Michel Foucault mostrava-se perplexo perante a tentação pós-moderna de recorrer ao mito renovado da plebe (a multitude plebeia?) como sujeito da resistência ao bio-poder: “Não há que conceber, desde logo, a plebe como o fundo permanente da história, o objectivo final de todas as servidões, a brasa nunca de todo extinguida de todas as revoltas. A plebe não tem, desde logo, realidade sociológica […], mas continua a haver algo que não é matéria prima, mais ou menos dócil ou recalcitrante, como movimento centrífugo, energia inversa, escapatória. A plebe não existe, desde logo, mas há plebe, esta parte de plebe”(5). Também Virmo admite a “ambivalência” de uma multitude desgarrada entre manifestações de liberdade e de servilismo, igual que admite a ambivalência da retórica da diferença, susceptível de desembocar no respeito das singularidades e também numa nova ordem hierárquica das diferenças. Pese embora estas contradições, a multitude teria o interesse de tecer “um laço directo com a dimensão do possível”: ao contrário das velhas seguranças, firmezas e enraizamentos do emprego e do habitat, a sua experiência quotidiana do aleatório e da contingência, da mobilidade e da insegurança inerentes ao bio-poder do capital, torna-a disponível para o inédito e o inesperado. Esta contingência estrutural, segundo Virno, pode revelar-se portadora de emancipação(6).

A prova da estratégia

Nem o enfoque filosófico, nem o sociológico, nos permitem mostrar com precisão as partes de confusão e de divergência que pode alimentar o uso, seja simplesmente descritivo ou mais conceptual, da noção de multitude. Para entender o seu alcance, há que levar a questão ao terreno da prova estratégica: “Os sociólogos, constatava Foucault, avivam até nunca acabar o debate sobre o que é uma classe e quem pertence a ela. Mas até agora ninguém examinou, nem aprofundou, a questão de saber o que é a luta. O que é a luta, quando se diz “luta de classes”? Gostaria de discutir, partindo de Marx, não a sociologia das classes, mas o método estratégico que concerne a luta”(7). Isto é também o que gostaríamos de discutir com Virno e com Negri: o sentido estratégico da multitude. Embora, sem esquecer que Foucault, após ter convidado à discussão estratégica, não duvidou em contradizer-se reivindicando uma “moral teórica anti-estratégica”. Este eclipse da estratégia foi no seu caso paralelo ao da Revolução, que através da prova da revolução iraniana se havia voltado a “uma forma vazia”.

Acerca de Hardt e Negri, junto a importantes acordos sobre a guerra global e o estado de excepção permanente, os reptos da “bio-propriedade” e da apropriação “comum” (para evitar a confusão entre propriedade pública e propriedade estatal), ou a invenção de novas formas de democracia participativa, indicamos de forma sintética uma série de divergências ou de questões por resolver:

1.Algumas extrapolações, que apareciam em “Império”, rapidamente desmentidas pelas expedições imperialistas e pela hegemonia militar restaurada pelo Estado nacional norte-americano(8), foram corrigidas e matizadas em “Multitude”. Mas na medida em que se mantém a hipótese de um mundo rizomático, acentrado e acéfalo, o poder efectivo (do capital, do Estado, da força) tende a dissolver-se nos “efeitos do poder” e nos jogos do anti-poder. Uma estratégia sem espaço próprio, sem objectivo e sem dialéctica de fins e meios, resulta difícil de pensar.

2.Ao contrário de John Holloway, que absolutiza a dominação e não vê saída alguma para o calcanhar de ferro do fetichismo (e só encontra salvação no grito incondicional e na saída da história), em “Multitude” não se questiona a reificação, o fetichismo da mercadoria, a ideologia dominante. O resultado é uma inversão radical da relação de subalternidade(9). Em vez de uma alienação do trabalhador submetido à reprodução impessoal despótica do capital, é o capital quem se torna um produto subalterno e dependente, uma espécie de resíduo inerte da criatividade vital da multitude cuja espontaneidade subversiva se supõe capaz de resolver uma questão estratégica que nem sequer necessita ser enunciada.

3.A redução dos territórios e dos estados-nação a um papel quase residual, tende a dissolver as mediações políticas – não só os poderes estatais, também os partidos e as suas lutas – no espaço cosmopolítico, homogéneo e a/estratégico do Império. Ernesto Laclau também assinalou esta debilidade. Sublinha que, para Hardt e Negri, “a unidade da multitude procede da agregação espontânea de uma pluralidade de acções que não têm necessidade de ser articuladas: falta por completo em “Império” uma teoria da articulação (e das mediações, acrescentamos nós), sem a qual a política se torna impensável”(10). De tudo isto resulta uma estranha incoerência, entre a radicalidade formal do discurso filosófico e umas modestas propostas de reformas compatíveis com a arquitectura institucional do Império. A cena mundial torna-se um teatro de sombras onde uma abstracção de multitude enfrenta uma abstracção de Império.

4.Hardt e Negri não têm praticamente em conta (ainda menos que Virno) as contradições no seio da multitude, pretendida superação das velhas antinomias da identidade e da diferença para realizar pacificamente uma harmoniosa síntese das singularidades e do comum. Esta reconciliação retórica permite esquivar um tratamento sério do problema das convergências estratégicas a construir no movimento alter-globalista. Poder-se-iam citar muitos exemplos de contradições entre o local e o global: a defesa do emprego e a do meio ambiente, etc. Estas contradições podem ser consideradas resolvidas no distante horizonte da grande transparência comunista, mas no nosso actual horizonte estratégico, a unidade dos explorados e dominados de todos os países não é um dado espontâneo. A crise do consenso de Washington e as diferenciações que engendra entre os dominantes terão o seu reflexo nas diferenciações políticas no seio do próprio movimento alter-globalista. Esta questão decisiva das convergências estratégicas fica por resolver, nem na “homologia” dos campos na sociologia de Bourdieu, nem na justaposição dos “âmbitos específicos” no caso de Foucault. Uma consequência possível da falta de articulação dos conflitos pode ser vista na redução da política a simples alianças tácticas, conjunturais e pontuais, sem foco estratégico, das diversas coligações multicolores. É difícil evitar a tendência até um grau zero da estratégia, quando se rechaça a crítica sistémica do capitalismo em favor de uma simples rede de redes, uma multitude de multitudes, um movimento de movimentos. Se, apesar de tudo, a diversidade das resistências é capaz de convergir na experiência dos fóruns sociais, deve-se à lógica impessoal do próprio capital e à penetração do despotismo mercantil em todos os poros da vida social constituam um poderoso factor de reagrupamento.

5.À maneira de Virno, Hardt e Negri pretendem inventar uma “democracia não representativa”, que vá mais longe que o paradigma clássico da soberania e da representação. Hoje começa, diz Virno, depois do 11 de setembro e da invasão do Iraque, a “fase constituinte” do pós-guerra fria: a globalização armada, a luta pela propriedade intelectual, o endividamento de sub-continentes inteiros, a economia pós-fordiana, a crise da propriedade privada provocada pela multiplicação de bens “inapropriáveis” (informação, saberes, linguagem), tudo contribui para a urgência de encontrar “novas formas políticas”(11). Esta constatação tem uma parte de verdade. A socialização massiva do trabalho intelectual e a sua incorporação crescente à actividade produtiva e reprodutiva dão uma dimensão nova à aspiração e à capacidade democrática dos dominados. Segundo Virno, há que construir orgãos de democracia não representativa, susceptíveis de se reapropriarem dos saberes e dos poderes confiscados pelo Estado. No umbral de um novo paradigma político todavia balbuciante, estaríamos numa situação comparável à do século XVII: “A questão chave está em saber que forma política dar às prerrogativas fundamentais da espécie homo sapiens”. À falta de elementos de solução prática, Virno contenta-se em registar um momento de apagão estratégico: “Depois de Seattle, o movimento global acumula sem cessar energia, sem saber como utilizá-la. Está confrontado com uma estranha acumulação sem saída adequada”(12).

Este movimento apresenta-se perante tudo como “movimento ético” de resistência ao pós-fordismo e à intenção de se apoderar da própria vida, e não só do tempo de trabalho. Contra esta expansão sem limite do capital, a procura de uma “vida boa” expressa-se sob a forma de uma reivindicação ética, antes que política, cuja carga subversiva não se deve subestimar sob o pretexto de que relativiza as noções de exploração e de luta de classes. Pode-se discutir larga e extensamente sobre a relação entre ética e política. O certo é que esta resignação no primado (mesmo que seja temporal) da ética sobre a política é um eco da exuberante retórica moralizante e despolitizadora do neo-liberalismo, sinistramente ilustrado na apologia grandiloquente das guerras “éticas” ou “humanitárias”.

6.Através da crítica da categoria de “povo”, Hardt e Negri apontam contra o conceito de soberania, que lhe é consubstancial. Num mundo onde os elementos emergentes de um direito cosmopolita continuam subordinados a um direito internacional baseado nas relações inter- estatais, é difícil desprender-se por completo da noção de soberania sem hipotecar a própria possibilidade de uma legitimidade oposta à potência dos mercados “sem fronteiras”. Neste  aspecto, o último Derrida mostrava-se judiciosamente prudente e de certa maneira mais político: “Não creio que haja que se opor à política. Nem sequer à soberania, que em algumas situações nos vem bem para lutar, por exemplo, contra algumas forças mundiais do mercado. Continua a ser uma herança europeia a conservar e a transformar de cada vez. É o que digo em Granujas da democracia europeia”(13). Os próprios Hardt e Negri reconhecem furtivamente a ambivalência da categoria de soberania, entre a conservação de uma soberania de origem teológica e o advento de uma soberania democrática. Admitem que a soberania é “um fenómeno necessariamente duplo”, que “funciona em duplo sentido”(14). Mas quando se trata de tirar as consequências políticas, ficam prisioneiros de uma oscilação entre um discurso libertário radical, “há que destruir a soberania e a autoridade”, com o risco de que esta supressão radical da autoridade, incluso da maioria, reduza a multitude a uma soma de corporativismos reivindicativos sem mais nenhum vínculo entre si do que a improvável carta do “comum” e a busca de uma “nova forma necessária de soberania” que apenas esteja além de especulações institucionais sobre o governo mundial e sobre uma “Magna Carta Contemporânea” compatível com os interesses bem concebidos das novas “aristocracias globais”. Uma antecipação das mesmas podem ser as alianças internacionais tecidas pelo governo Lula(15).

7.Enfim, é como se, ao fim de quatrocentas páginas do livro, os seus autores tomassem consciência de que a discussão estratégica não tenha avançado sequer uma polegada, apesar dos atrevimentos terminológicos, apresentam in extremis com uma espécie de escrúpulo tardio a crucial questão da ruptura: “quando ocorre o momento da ruptura?”. A pergunta contesta-se com um acto de fé inspirado no mito mobilizador soreliano da greve geral. Ressuscitam-se assim os sonhos post-sessenta/oitistas do “ano 01” ou as utopias pacifistas do congresso socialista de Basileia em vésperas da Primeira Guerra Mundial: “Num futuro bio-político caracterizado pela derrota do bio-poder, já não será possível a guerra”, prometem-nos Hardt e Negri: “uma greve política global de uma semana bastaria para deter qualquer guerra”. Como se tudo se detivesse? “Sem a participação activa dos dominados, todo o edifício da soberania fundir-se-ia”, e se os produtores sociais rechaçassem a relação de dominação, “o Império cairia também como um montão de escombros”(16). Ou como um Golen reduzido a pó! O mito apocalíptico não atende às formas efectivas da dominação e aos efeitos deliberadamente ignorados da reificação mercantil. Como se o trabalho assalariado não estivesse já submetido à servidão involuntária do trabalho alienado e do fetichismo, se o mesmo capital só fosse capaz de respostas reactivas ao poder criativo da multitude, bastaria então romper as cadeias de uma nova servidão voluntária. A fé do carvoeiro no lugar do projecto estratégico. Mas há que recordar o que ocorreu com as multitudes guerreiras em agosto de 1914.

Uma tentação teológica

Como mostra destas ideias estratégicas, a parte programática final do livro, sobre a democracia, deixa esfomeado o leitor. Embora não lhe falte ambição, com exortações repetidas, ao inventar novas formas que estejam à altura da época. Trata-se, nem mais nem menos, que explorar “a forma em que as redes da multitude possam constituir um verdadeiro contrapoder e dar nascimento a uma sociedade global realmente democrática”(17). Curiosamente, os autores propõem uma “nova ciência da democracia global destinada à multitud”. Esta nova ciência deveria “transformar os principais conceitos políticos da modernidade: Uma ciência da pluralidade e do hibridismo, uma ciência das multiplicidades, capaz de definir a maneira como as diversas singularidades se expressam plenamente na multitude”(18). Imaginando um processo de legitimação desembaraçado da soberania do povo e baseado na produtividade bio-política da multitude (ou na “produtividade queer”!), o projecto torna-se logo curto. Porque não basta proclamar abstractamente “direitos primários”, como o direito à desobediência e direitos à diferença, para dar um conteúdo efectivo a este grande desenho. Tão pouco basta oficializar o divórcio entre democracia e representação e proclamar à multitude libertada de qualquer obrigação de obediência a um poder para resolver as contradições reais e as tensões em que se move e se continuará a mover, a “democracia por vir”, que segundo Derrida não se devia confundir com uma “democracia futura”(19).

A ideia do “comum”, que segundo Hardt e Negri constitui “o calcanhar de um verdadeiro projecto político postliberal e postsocialista”, por cima da velha antinomia do privado e do público, pode abrir uma pista interessante, embora continue a ser algébrica, por não levar mais longe a reflexão sobre as formas combinadas de apropriação social. Em definitivo, a montanha filosófica pariu um ratão político. Em vez da ansiada renovação estratégica, só se encontra um pathos teológico que responde à “alegria de ser comunista”, como a que acabava, sob a forma de profissão de fé, em Império. Mas em Multitude a retórica da beatitude é mais sistemática.

O martírio é celebrado como “testemunho” e “acto de amor”(20), embora precisando, pouco menos, que esse martírio feliz não deve ser confundido com o martírio mórbido e desesperado do kamikaze ou da bomba humana. O amor é glorificado como “o acto político que constrói a multitude”: “O amor divino pela humanidade e o amor humano por deus são expressos e encarnados no projecto material comum da multitude”. Longe da nossa vontade menosprezar a dose de amor (do próximo e do mais distante) que faz parte necessária dos projectos de emancipação. Mas neste hino ao amor há ressonâncias cristãs baseadas, em última instância, numa antropologia optimista que nada, na história recente, permite justificar.

A “potência da carne” retorna à substância original de uma força de libertação. A multitude representa uma “nova carne social” e uma “plenitude de vida” que “rechaça a unidade orgânica do corpo”. Para um carniceiro, a carne sem corpo reduz-se praticamente a filetes. Este vitalismo carnal, alimentado explicitamente pelo materialismo especulativo de Spinoza e, talvez, embora menos conscientemente, pelo “materialismo teológico” de Feuerbach, opõe a exuberância expansiva da carne à limitação aprisionadora do corpo. Este rechaço das metáforas corporais (do povo ou do Estado) opõe-se sobretudo ao seu uso disciplinar, mas reflecte também o abandono deliberado, a favor da rede rizomática, de qualquer noção de organização sistémica ou estrutural, que tão fecundas resultam para entender o metabolismo social e as suas formas de auto-regulação. Parece que não é conveniente pensar de vez na transversalidade inovadora das redes e na ordem sistémica do capital.

Enfim, a figura paradigmática do “pobre” retoma e desenvolve a do mendigo franciscano que frequentava as últimas páginas de “Império”. O pobre converte-se na encarnação simbólica “não somente da condição ontológica da resistência, mas mesmo a da vida produtiva”(21). A pobreza absoluta, não como simples carência, mas como “exclusão total da riqueza objectiva”, aparece como a sorte comum da espécie humana, por cima de conflitos de interesses e de lutas de classes: abaixo da hegemonia da produção imaterial, “todos somos pobres!”, proclamam Hardt e Negri. Pode ser, em certo sentido e até certo ponto! No sentido de que o burguês partilha com o proletário uma alienação comum ante a lógica mercantil e uma mesma miséria afectiva e espiritual. Mas à vista das pobrezas extremas e materiais, torna-se um pouco indecente pretender comungar numa pobreza universal.

O recurso contínuo ao jargão teológico acaba por servir de comodismo, mascarando apenas a desproporção entre a anunciada revolução filosófica e a pobreza (bem real, neste caso) das respostas políticas. A perspectiva tende a reduzir-se à dupla temática do êxodo e do milagre. Tal e qual a dos hebreus pelo deserto, o êxodo, reaparece em “Multitude” como uma “fuga longe das forças de opressão” e como uma “evasão em massa”. A mesma opinião que Virno, para quem a experiência da contingência estrutural própria da post-modernidade, ainda que possa alimentar o oportunismo e o cinismo, também pode desembocar na insubmissão e no exílio fora do sistema: não necessariamente um êxodo territorial, mas uma deserção das obrigações do trabalho escravizadora e das gratificações ilusórias do consumo massivo. Para escapar dos sortilégios da mercadoria, basta retirar-se do jogo e fugir, sem tentar conquistar nenhum poder alternativo:

“Êxodo significa que não queremos tomar o poder no país do Faraó, que não queremos construir um novo Estado” (22). As teorias dos jogos consideram que o jogador pode abandonar a mesa em qualquer momento e deixar de jogar. Mas a luta de classes não é precisamente um jogo. Os explorados e os oprimidos estão embarcados à força. Não podem, de forma colectiva, subtrair-se à lógica da luta. Não têm a opção de não vender a sua força de trabalho. Não podem deixar de “jogar” a não ser que se revendam: lutar não é jogar! A grande mistificação das teorias contratuais consiste em apresentar a servidão imposta como una livre eleição. Podem existir escapatórias e promoções individuais que contribuem para dar uma ilusão de liberdade (o famoso mito do self made man), mas não pode haver evasão em massa do grande cerco capitalista (23).

Quanto à saída prometida para esta longa marcha para o exílio e do êxodo através dos desertos – pois os hebreus reinstalaram-se na terra de Canã – será um milagre, um acontecimento político transfigurado em milagre teológico não condicionado historicamente. “Multitude” termina com um credo: “Chegado o momento, um acontecimento propulsar-nos-á como uma flecha para este futuro vivo. Será o verdadeiro acto de amor político” (24). As promessas de Deus são incertas, mas há que crer nelas, ensinam as Escrituras. Questão de fé e de crença. Chegará o momento! Mas como se retrai… A retórica teológica de “Multitude” apoia-se num pressuposto antropológico optimista a que não lhe falta coerência. A contraponto das visões crepusculares, reactiva uma obstinada dialéctica do progresso histórico que foi desmentido pelas provas históricas do século passado e pelas sombrias promessas do que acaba de começar. A genealogia das formas de resistência, “da reforma à revolução”, mostra “uma tendência para formas de organização cada vez mais democráticas” (25). Para atrever-se a afirmar isto há que possuir uma sólida confiança nas leis da história, que tal como vai o mundo não parece estar muito justificada. Esta confiança situa-se nos antípodas do “alerta de fogo” (toque a rebate) que fazia soar Benjamim quando denunciava, entre as responsabilidades do desastre, “o apego dos políticos ao mito do progresso e a sua confiança na massa [a multitude?] que lhes servia de base”(26). Nada mais corruptor para o movimento revolucionário alemão, continuava sublinhando no umbral da catástrofe, que “a convicção de nadar a favor da corrente”(27).

Confundindo o desenvolvimento técnico com a pendente dessa corrente, o movimento operário tinha acabado por imaginar que “o trabalho industrial representava um logro político”. Os autores de “Multitude” não escapam a este optimismo tecnológico, imaginando um “trabalho imaterial” portador por sua vez de emancipação política.

“Alcançámos um ponto, afirmam Hardt e Negri, em que coincidem os três princípios da liberdade, da eficácia e da correspondência de formas sociais e formas político-militares”. Este percurso não é desde logo linear, mas posto que parece ser “o único possível”(28), não haveria que se inquietar demasiado pelos desvios e contratempos: o sentido reencontrado da história acabará por levá-lo a bom porto: “Pode-se ler a história das revoluções modernas como uma progressão a saca-rolhas, irregular, mas real, até à realização do conceito absoluto da democracia”, que é a “estrela polar até a que se orientam os nossos deuses e as nossas práticas políticas”(29). O “conceito absoluto de democracia” substitui o espírito absoluto hegeliano numa teleologia historicista restaurada, recolhendo na sua estela a tentação dos anunciados finais da história.

Nesta perspectiva tranquilizadora, as peripécias políticas e os ardis da razão mercantil não podem inquietar. Conspiram, sem sabê-lo, na preparação do happy end. O próprio capital financeiro tende a “funcionar como uma representação geral das nossas capacidades produtivas comuns (…). Na medida em que [o capital financeiro!] se orienta até ao futuro, pode-se, paradoxalmente, discernir a figura emergente da multitude, ainda que tome uma forma invertida e distorcida”(30). Através das formas postmodernas da reprodução capitalista, “amadurece o poder constituinte da multitude (…). Os governos são cada vez mais parasitários e a soberania inútil: pelo contrário, os governados tornam-se mais autónomos e capazes de fazer sociedade”. Cada vez mais, cada vez mais…(31) Tudo marcha o melhor possível, no melhor dos mundos possíveis, senhora marquesa! Esta confiança inquebrantável no “cada vez mais” de cada dia, tem as suas consequências práticas. Nela baseia-se a valoração positiva das virtudes progressistas do Império face ao imperialismo arcaico dos EUA e a possibilidade de alianças tácticas com as suas “aristocracias ou as suas élites globalizadas”. Em nome desta visão, o tratado constitucional europeu pode resultar aceitável, apesar das suas insuficiências, como um pequeno passo adiante na boa direcção. Estas citações parecem parafrasear os diagnósticos mais unilaterais (mais antiquados) de Marx sobre as virtudes revolucionárias do capital. Depois correu muita água, suja e contaminada, em baixo das pontes, e não se pode esquecer, em nome de nenhum progressismo ressuscitado, a sombria dialéctica do progresso e da catástrofe, actuando nos incertos acontecimentos de uma história aberta. Só se pode predizer a luta, dizia sabiamente Gramsci, não o seu desenlace.

A revolução estratégica anunciada por Hardt e Negri resume-se, em definitivo, na equação que associa Lenine a Madison para coordenar os objectivos de “O Estado e a Revolução” – a destruição da soberania através do poder do comum – com os métodos institucionais de “O Federalista”(32). Lenine, para o trabalho do negativo, Madison, para a edificação positiva de um novo dispositivo institucional. Esta equação atormentará, tanto tempo como o teorema de Fermat para os matemáticos, todos aqueles e aquelas que renunciaram resolver o enigma da revolução social: como fazer do nada, se não tudo, pelo menos algo e alguém?

*Daniel Bensaid é filósofo. Faz parte da direcção da LCR francesa. Dirige a revista Contretemps. O seu último livro publicado em castelhano é “Cambiar el mundo”, La Catarata, Serie VIENTO SUR, Madrid, 2004.

Tradução: António José André


Notas

1/Em “Grammaire de la multitude”, Editions de l’Eclat, Cahors, 2002.
2/Entrevista com Flávia Costa, em Cultura, agosto 2004.
3/Ver o livro de Biagio de Giovanni, que pretende uma teoria de classes no livro II de “O Capital”, por causa de uma confusão entre proletariado e trabalho produtivo (Biagio de Giovanni, “La teoria politica delle classi nel Capitale”, Bari 1976). Fiz referência de maneira detalhada às confusões que dão lugar às leituras unilaterais e reducionistas de “O Capital” sobre as classes sociais, em “Marx l’intempestif” (París, Fayard, 1995), “La discordance des temps” (París 1995) ou “Le sourire du Spectre” (Michalon, 2000).
4/Hegel, “Principios de la filosofía del derecho”.
5/Michel Foucault, “Dits et Ecrits” II, Paris, Gallimard, 2003, p.421.
6/Virno destaca que a ambivalência da multitude reconhece-se nos sentimentos dominantes da época: o oportunismo, o cinismo e o medo. O oportunismo pode também traduzir, na sua opinião, a aptidão para aproveitar a oportunidade; o cinismo pode expressar a consciência de que qualquer pertença é provisória e que as regras e os valores variam; o medo, enfim, traduzir as sensações de quem faz a experiência quotidiana da inovação permanente das formas de vida e de trabalho flexível. Estes sentimentos alimentam “uma extraordinária familiaridade com o possível”, que é também uma “oportunidade”.
7/Michel Foucault, op.cit., p.606.
8/Para a crítica de Império, Daniel Bensaid “Le Nouvel Internationalisme”, Paris, Textuel, 2003.
9/Negri mantém-se aqui rigorosamente fiel à problemática apresentada desde “Marx au-delà de Marx”, París, Bourgois, 1979. Para uma crítica deste enfoque, Daniel Bensaid, “En busca del sujeto perdido, ou Negri corrige Marx”, em “La discordande ces temps” (París, 1995)
10/E.Laclau, em “Empire`s New Clothes”, P.A.Passavant y J.Dean editores, Nueva York, Routledge, 2004, p.26.
11/Paolo Vimo, entrevista com Verónica Gago, em Brecha, Montevideo, julho 2004.
12/Paolo Vimo, op. Cit.2
13/Jacques Derrida “Je suis en guerre contre moi-même”, em Le Monde, 19 agosto 2004.
14/Hardt e Negri, Multitude, op.cit., p. 377.
15/Ibid. p. 366-367: “É verdade que estes movimentos [sociais] continuarão opostos às aristocracias imperiais. E com toda a razão, em nossa opinião. Mas é no interesse destas considerar os ditos movimentos como aliados potenciais e recursos para a formulação das políticas globais”.
16/Ibid. p. 379-381.
17/Ibid. p. 305.
18/Ibid. p. 355-358.
19/Jacques Derrida precisa assim: “Democracia por vir, não quer dizer democracia futura, que um dia estará presente. A democracia nunca existirá no presente, não é apresentável, e tão pouco é uma ideia reguladora no sentido kantiano” (Jacques Derrida, “Le concept du 11 septembre”, Paris, Galilée, 2004). Sempre “por vir”, esta democracia, cuja concepção é a única “que acolhe a possibilidade de melhorar indefinidamente”, está nos antípodas do “conceito absoluto da democracia” a que corresponde o desenvolvimento histórico, segundo Hardt e Negri.
20/Multitude, op.cit., p. 393.
21/Ibid. 166, 185, 250.
22/Paolo Virno, entrevista com Amador Fernández Savater, em El Viejo Topo, julho 2004.
23/Daniel Bensaid, no capítulo “Luchar no es jugar”, em “Marx l`intempestif”, París, Fayard, 1995.
24/Multitude, op.cit., p. 404.
25/Ibid. p.10.
26/Walter Benjamin, nona tese sobre o conceito de história.
27/Ibid. décima tesis.
28/Multitude, op.cit., p. 115.
29/Ibid. p.278.
30/Ibid. p.324.
31/Benjamin citou ironicamente, na sua 13ª tese, dedicada a desconstruir a ideologia do progresso ilimitado, uma frase de Joseph Dietgen emblemática desta ideologia: “Cada dia a nossa causa se torna mais clara e cada dia o povo se torna mais sábio”. Cada dia amadurece a multitude, poder-se-ia ironizar…
32/Multitude, op.cit., p. 400.