Miguel Romero “Moro”, a dignidade revolucionária

 

Artigo de Manuel Gari, traduzido por Luís Leiria para o portal Esquerda.net.

Jornalista e militante revolucionário, viveu e combateu a ditadura franquista e o sistema capitalista com a mesma paixão, inteligência e dignidade com que enfrentou a sua doença. Nunca perdeu a capacidade de indignação diante da injustiça, sempre se pôs do lado dos de abaixo, foi imune ao acomodamento, em todos os momentos manteve a lucidez analítica e a decisão na ação. Como ocorreu com tantos outros e outras revolucionários, primeiro teve uma sensibilidade para o sofrimento alheio, logo uma opção ética (“com os pobres da Terra quero eu jogar a minha sorte”) e mais tarde, só mais tarde, vieram a tática e a estratégia, o partido e o programa. Viveu exatamente como pensava. Nem uma gota de ambição, nem uma grama de lucro. Decentemente. Austeramente. Incorruptível.

Por isso, já muito enfraquecido pela doença, encontrava-se como peixe na água nas praças do 15-M e no meio das “marés” ou nas reuniões e atividades formativas com jovens da Esquerda Anticapitalista. Exatamente da mesma forma de quando começou a participar no movimento estudantil dos anos 60, de forma idêntica à sua presença nos piquetes nas greves gerais ou nas mobilizações primeiro pela amnistia, depois contra a entrada na NATO e a presença das bases norte-americanas, na solidariedade com a frustrada revolução nicaraguense ou em qualquer causa que valesse a pena. Muito particularmente em todas as tentativas de organizar a resistência internacional frente ao capitalismo global; daí a intensa atividade que desenvolveu nos Foros Sociais Mundiais como o de Porto Alegre.

Com a mesma valentia que lutou por conquistar as liberdades enfrentou-se com as travas e as restrições da Constituição, filha de uma Transição que derrubou as aspirações do movimento operário de todo o Estado espanhol e dos povos das nacionalidades. Escapou à prisão sob o franquismo, mas os seus artigos no dossier Viva a República! na revista Saida levaram-no por um mês a prisão por negar-se a pagar a fiança exigida. Paradoxos da vida, alguém que dedicou a sua juventude a derrubar a ditadura, viu-se preso pelos novos democratas por defender uma forma de governo e estado democráticos. Foi um irredutível, jamais aceitou a farsa dos Pactos de la Moncloa nem de um regime, o da reforma que hoje mete água e no qual não confia a juventude farta, insubmissa e indignada.

Moro”

Moro, nome pelo qual o conhecíamos, os seus colegas e amigos, e com o qual se identificava plenamente – fez parte da geração de 68 quando parecia que podíamos mudar o mundo, quando – apesar da repressão – corriam ventos de esperança e generosidade, tempos em que não era uma loucura nem raro lutar pela Revolução socialista que concebíamos bem diferente à ditadura stalinista, e bem ao invés, pretendíamos que fosse a condição para uma sociedade de mulheres e homens livres e iguais. Tempos de generosidade e compromisso, bem afastados do maldito princípio reitor do rácio custo/beneficio.

Precisamente então conhecemos-nos, em momentos em que, tomando palavras suas dedicadas a Silvino Sariego, forjamos “uma amizade entranhável, criada há mais de quarenta anos, quando amizade e revolução eram inseparáveiss”. Moro, além de um lutador, um ativista e um lúcido político – dos que jamais cobraram uma moeda dos cofres públicos – foi um amigo entranhável e incondicional de suas amigas e amigos para quem é um orgulho ter contado com o seu afeto e confiança. E compartilhado vida. E aí nasceu a minha amizade e militância à prova de provas com Moro, Jaime Pastor, Luzia González (como tenho saudades!), e continuaram a chegar novas gentes a nossas vidas: Chato Galante, Justa Montero, Marti Caussa, Petxo Idoyaga e acrescentaram-se gentes, muita gente de uma lista impossível de reproduzir.

Participação política

No ano de 66 desejava organizar-se politicamente, não foi preciso nem argumentar a necessidade de o fazer, bastou marcar um encontro. Cedo me dei conta da qualidade do “contrato”. E desde então nem em um só dia da sua vida deixou de estar organizado para lutar. Porque Moro sempre concebeu que a ação ou é coletiva e partilhada ou não é emancipadora. E democrática. A ação e a organização do movimento social, para Moro e para os que compartilhámos a experiência, deve estar impregnada de democracia, de autogestão, de autorganização. Para ele não há partido que valha a pena se, ainda nas piores condições de repressão, não é totalmente democrático no seu funcionamento.

Primeiro militou na Frente de Libertação Popular (FLP) e depois da sua dissolução foi um dos fundadores do grupo Comunismo, embrião da Liga Comunista Revolucionária (LCR) de cuja direção fez parte e que durante anos representou nos organismos da Quarta Internacional, onde partilhou debates, projetos e ideias com gente da envergadura, entre outros, de Ernest Mandel (seu mestre), Francisco Louçã e Daniel Bensaïd. O “Bensa”, seu amigo francês, referentes ambos de ambos nas suas elaborações políticas, com quem manteve um diálogo permanente até o dia da morte do filósofo e ativista, a 12 de janeiro de 2010.

Moro jogou um papel fundamental na aproximação entre a ETA VI e a LCR que culminou na fusão de ambas organizações. Durante anos impulsionou o desenvolvimento das organizações revolucionárias na América Latina, anos em que foi diretor da edição em castelhano de Inprecor, revista política bimestral da LCR. Mas o seu maior labor (e ilusão) jornalística virou-a nos seus artigos para Combate, jornal dessa mesma organização de que foi diretor em várias etapas, até a fusão do seu partido com o Movimento Comunista (MC). Depois do falhanço dessa unificação, fez parte de Espaço Alternativo, corrente da IU, que em 2008 abandonou a coligação e se converteu na Esquerda Anticapitalista, organização da qual continuava a fazer parte ativamente Miguel Romero.

Viento Sur

Criou a revista bimestral Vento Sur, publicação com uma importante influência na esquerda alternativa, da que foi editor – e principal impulsionador – durante os 131 números publicados até o dia de hoje. Esta foi a sua principal contribuição nos últimos anos, incluídos os da sua longa doença, desde a revista de papel ou o site. Labor jornalístico que compartilhou com a participação em foros e mesas redondas, conferências e palestras formativas, trabalhando durante anos na ACSUR-Las Segovias e autor de obras como “Viva Nicaragüa livre!” (1979), “A guerra civil espanhola em Euskadi e Cataluña: contrastes e convergencias” (2006) e “Conversas com a esquerda anticapitalista” (2012) ou sua participação como coautor em “Porto Alegre se move” (2003), “1968. O mundo pôde mudar de base” (2008), “Enrique Ruano, memória viva da transição” (2009) e “Pobreza 2.0” (2012).

Moro viveu intensamente a vida, dedicou-se a tudo aquilo que valia a pena. Desfrutou da sua família até o último momento, do amplo clã dos Romero do que se vangloriava. E com razão, acrescento, uma vez conheci-os. Exceto na sua etapa de Paris, toda a sua vida adulta foi passada em Madrid, salvo curtas estadias noutras cidades, obrigado pela clandestinidade. Mas sempre professou ser andaluz. Um andaluz capaz de entender as gentes de outros povos e de respeitar o seu direito a decidir. Desfrutou de suas amizades. Das antigas e das novas. De gentes velhas e de gentes quase recém chegadas. Não perdeu a capacidade de ligar-se às gerações seguintes. Desfrutou dos momentos, da cada momento. Regeu o seu quotidiano pelo sábio carpe diem. Pelo seu carácter e pela sua visão do mundo, “nada humano lhe era alheio”. Tudo o interessava, desde o impacto da biotecnología ao significado da obra de Brecht.

Mas sobretudo tinha afeições. Grandes. Apaixonado do flamenco e partidário de Enrique Morente, desfrutava igualmente a Sinfonía nº 40 de Mozart ou Tristán e Isolda; fã dos Beatles e de Van Morrison e bom conhecedor do jazz. Mas sobretudo foi um leitor empedernido, evidentemente de autores marxistas, mas não só; lia Maiakovski, lia e relia “Poeta em Nova York”. Olhem todas as contracapas da Vento Sur e comprovarão a homenagem permanente a García Lorca. E devorava romances desde que, segundo me contou, de menino tropeçou com “A ilha do Tesouro”. Muito particularmente era apaixonado pela novela negra. Como tantos outros revolucionários. E o cinema. Assíduo assistente ao Festival de San Sebastián, é possível que tenha algum recorde de assistência a “Roma cittá aperta” ou “Viridiana”, admirador de Billy Wilder e de Berlanga, em mais de um artigo político – não se sabe como – encontrou a desculpa para citar Lauren Bacall. E um segredo: quando jogava o Barça, o relógio parava, era melhor esperar para ligar depois da transmissão do jogo. Isso, tudo isso e mais configuravam o mundo polifacético de alguém a que muita gente só conheceu pelo seu compromisso político.

Quantas e quantas coisas, amigo, colega Moro, poder-se-iam contar de ti! Não recordo nenhuma má. E sim recordarei sempre os bons e difíceis momentos políticos e pessoais em que estivemos juntos, colega. Até a própria noite que entraste em coma. Um momento antes ainda tinhas vontade de saber “como estão as coisas”, as de sempre, as tarefas do momento.

Se Moro pudesse fazer um balanço de sua vida, nada a expressaria melhor que umas palavras que escreveu há décadas, no artigo Ponto e aparte do número 518 do Combate, e que pode explicar o seu constante esforço por “ligar-se” à juventude indignada, com as novas gerações revolucionárias e sua obsessão pela renovação, por abrir espaço:

“Basta olhar o esquema do artigo que tenho à frente. Diz na primeira página “substituição”. Não é uma ideia muito original, mas é verdade que isso é o importante. Passamos o testemunho. Percorremos o trajeto que nos coube, tão diferente do que tínhamos imaginado, com todas as nossas forças. Não estamos cansados. Ainda com todos os obstáculos e tropeços, gostámos da corrida. E agora estamos satisfeitos de deixar o testemunho em mãos que também são as nossas e seguir adiante. Isto é o que conta e todo o resto é secundário”.