Rosa Luxemburgo: Um comunismo para o século XXI

“A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido – por numerosos que sejam – não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (…). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia torna-se o único elemento activo”. Anos mais tarde, a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu os revolucionários de Outubro de 1917 – antes de, no correr dos anos 30, os eliminar sem piedade. Uma verdadeira refundação do comunismo no século XXI não pode privar-se da mensagem de Rosa Luxemburgo.

Em janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo, fundadora do Partido Comunista Alemão (Liga Spartakus) foi assassinada por uma unidade de “corpos francos”, grupos de oficiais e militares contra-revolucionários (futuro viveiro do partido nazista), levada a Berlim pelo ministro social-democrata Gustav Noske para esmagar a sublevação spartaquista.

Ela foi, como Emiliano Zapata neste mesmo ano, uma “vencida da história”. Mas os seus assassinos não podem eliminar uma mensagem que continua viva na “tradição dos oprimidos”, uma herança inseparavelmente marxista, revolucionária e humanista. Quer seja na sua crítica do capitalismo, sistema desumano; no seu combate contra o militarismo, o colonialismo, o imperialismo; ou na sua visão de uma sociedade emancipada, na sua utopia de um mundo sem exploração, alienação ou fronteiras; este humanismo socialista de Rosa atravessa como um fio vermelho o conjunto dos seus escritos políticos – mas também a sua correspondência, as suas comoventes cartas da prisão lidas e relidas por sucessivas gerações de jovens militantes do movimento operário.

Porque é que esta figura nos continua a questionar ainda hoje? O que faz com que tantas décadas depois da sua morte ela continue a ser tão próxima de nós? Em que consiste a prodigiosa actualidade do seu pensamento precisamente hoje, neste final do século XX? Eu vejo pelo menos três razões para isso.

O alento internacionalista

Antes de tudo, numa época de globalização capitalista, de mundialização neoliberal, de dominação planetária do grande capital financeiro, de internacionalização da economia a serviço do lucro, de especulação e de acumulação, a necessidade de uma resposta internacional, de uma internacionalização da resistência, em síntese, de um novo internacionalismo, está mais do que nunca na ordem do dia.

Ora, poucas figuras do movimento operário encarnaram de forma tão radical como Rosa Luxemburgo a ideia internacionalista, o imperativo categórico da unidade, da associação, da cooperação, da fraternidade dos explorados e oprimidos de todo os países e de todos os continentes. Como se sabe, ela foi com Karl Liebknecht, um dos raros dirigentes do socialismo alemão a opor-se à “Santa Aliança” e à votação dos créditos de guerra em 1914. As autoridades imperialistas alemãs – com o apoio da ala direita da social-democracia – fizeram-lhe pagar caro a sua oposição internacionalista consequente colocando-a atrás das grades durante a maior parte do conflito. Confrontada com o fracasso dramático da Segunda Internacional, ela sonhava com a criação de uma nova associação internacional dos trabalhadores e só a sua morte a impediu de participar, em conjunto com os revolucionários russos, da fundação da Internacional Comunista em 1919.

Poucos compreenderam como ela o perigo mortal que representa para os trabalhadores o nacionalismo, o chauvinismo, o racismo, a xenofobia, o militarismo e o expansionismo colonial ou imperial. Pode-se criticar este ou aquele aspecto da sua reflexão sobre a questão nacional, mas não se pode duvidar da força profética das suas advertências. Utilizo aqui a palavra “profeta” no seu sentido bíblico original (tão bem definido por Daniel Bensaïd nos seus escritos recentes): não aquele que pretende “prever o futuro”, mas aquele que anuncia uma antecipação condicional, aquele que adverte o povo das catástrofes que advirão se não tomar outro caminho.

Socialismo ou barbárie

Em segundo lugar, neste final de um século que foi não somente dos “extremos” (Eric Hobsbawm), mas também das manifestações mais brutais da barbárie na história da humanidade, apenas podemos admirar um pensamento revolucionário como o de Rosa Luxemburgo, que soube recusar a ideologia cómoda e conformista do progresso linear, o fatalismo otimista e o evolucionismo passivo da social-democracia, a ilusão perigosa – como fala Walter Benjamin nas suas Teses de 1940 – de que bastaria “nadar a favor da corrente”, deixar que as “condições objectivas” actuassem.

Ao anunciar, numa brochura de 1915, A crise da social-democracia (assinada como Junius), a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo rompeu com a concepção – de origem burguesa, mas adotada pela Segunda Internacional – da história como progresso irresistível, inevitável, “garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento económico ou da evolução social. Uma concepção maravilhosamente resumida por Gyorgy Valentinovitch Plekhanov, que escreveu: “A vitória de nosso programa é tão inevitável como o nascimento do sol amanhã”. A conclusão política desta ideologia “progressista” não podia deixar de ser a passividade: ninguém teria a brilhante ideia de lutar, arriscar a sua vida, combater, para assegurar a aparição matinal do sol…

Detenhamo-nos por alguns instantes sobre o alcance político e “filosófico” da palavra de ordem “socialismo ou barbárie”. Ela era sugerida por alguns textos de Marx ou de Engels, mas foi Rosa Luxemburgo que lhe deu esta formulação explícita e definida. A história é percebida como um processo aberto, como uma série de “bifurcações”, onde o “fator subjetivo” – consciência, organização, iniciativa – dos oprimidos torna-se decisivo. Não se trata mais de esperar que o fruto “amadurecesse”, segundo as “leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais. Porque a outra cara da alternativa é um perigo sinistro: a barbárie. Através deste termo, Rosa Luxemburgo não designa uma “regressão” impossível a um passado tribal, primitivo ou “selvagem”: trata-se, a seus olhos, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial oferece um exemplo impressionante, muito pior, na sua desumanidade assassina, que as práticas guerreiras dos conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano. Jamais no passado tecnologias tão modernas – os tanques, o gás, a aviação militar – foram empregadas a serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão grande.

A palavra de ordem de Rosa Luxemburgo também se revelou profética do ponto de vista da história do século XX: a derrota do socialismo no Alemanha abriu o caminho para a vitória do fascismo hitleriano e, em seguida, para a Segunda Guerra Mundial e as formas mais monstruosas de barbárie moderna que a humanidade já conheceu, cujo nome, Auschwitz, tornou-se o símbolo e o resumo.

Não é casual que a expressão “socialismo ou barbárie” tenha servido de bandeira a um dos grupos mais criativos da esquerda marxista do pós-guerra na França: aquele ao redor da revista do mesmo nome impulsionada nos anos 50 e 60 por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort.

A escolha e o aviso indicados pela palavra de ordem de Rosa Luxemburgo continuam na ordem do dia também na nossa época. O longo período de recuo das forças revolucionárias – do qual começamos pouco a pouco a sair – foi acompanhado da multiplicação de guerras e de massacres de “purificação étnica”, dos Bálcãs à África, do ascenso de racismos, de chauvinismos, de integrismos de toda espécie, inclusive no coração da Europa “civilizada”.

Mas apresenta-se também um perigo novo, não previsto por Rosa Luxemburgo. Ernest Mandel assinalava, nos seus últimos escritos, que a escolha da humanidade para o século XXI não é mais, como em 1915, “socialismo ou barbárie”, mas “o socialismo ou a morte”. Ele designava, desta forma, o risco da catástrofe ecológica resultante da expansão capitalista mundial, com a sua lógica destruidora do meio ambiente. Se o socialismo não interromper esta corrida vertiginosa para o abismo – da qual a elevação da temperatura do planeta e a destruição da camada de ozono são os sinais mais visíveis – a própria sobrevivência da espécie humana está ameaçada.

Revolução e democracia

Em terceiro lugar, as correntes dominantes do movimento operário conheceram uma derrota histórica – de um lado, pelo colapso pouco glorioso do pretenso “socialismo real”, herdeiro de sessenta anos de estalinismo, e de outro, pela submissão passiva (ou adesão activa?) da social-democracia às regras neoliberais do jogo capitalista mundial. Frente a isto, a alternativa representada por Rosa Luxemburgo aparece mais do que nunca pertinente: a de um socialismo ao mesmo tempo autenticamente revolucionário e radicalmente democrático.

Como militante do movimento operário do Império Czarista – ela foi fundadora do Partido Social-Democrata da Polónia e da Lituânia, filiado ao Partido Operário Social-Democrata Russo – ela tinha criticado as tendências, a seu ver muito autoritárias e centralistas, das teses defendidas por Lenin antes de 1905. A sua crítica coincidia, neste ponto, com aquela do jovem Trotsky em As nossas tarefas políticas (1904).

Ao mesmo tempo, enquanto dirigente da ala esquerda da social-democracia alemã, ela combate a tendência da burocracia (sindical ou política) e das representações parlamentares a monopolizarem as decisões. A greve geral russa de 1905 parece-lhe um exemplo a ser seguido também na Alemanha: ela confia mais na iniciativa das bases operárias que nas decisões sábias dos órgãos dirigentes do movimento operário alemão.

Tomando conhecimento, na prisão, dos acontecimentos de Outubro de 1917, ela vai imediatamente solidarizar-se com os revolucionários russos. Na brochura sobre a Revolução Russa, redigida em 1918 na prisão (e que só seria publicada depois da sua morte, em 1921), ela saúda com entusiasmo este grande acto histórico emancipador, e presta uma homenagem calorosa aos dirigentes revolucionários de Outubro.

“Toda a coragem, a energia, a inteligência revolucionária, a lógica que um partido revolucionário pode dar provas em um momento histórico foi demonstrada por Lenin, Trotsky e os seus amigos. Toda a honra e a capacidade de ação revolucionária que faltou à social-democracia ocidental encontra-se entre os bolcheviques. A insurreição de Outubro não serviu apenas para salvar efetivamente a revolução russa, mas também a honra do socialismo internacional”.

Esta solidariedade não a impede de criticar o que lhe parece erróneo ou perigoso na política dos bolcheviques. Se algumas das suas críticas – sobre a autodeterminação nacional ou sobre a distribuição das terras – são muito discutíveis, e pouco realistas, outras, que tratam da questão da democracia, são muito pertinentes e de uma atualidade notável. Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar “como que por magia, a mais bela das democracias”, Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária.

“A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido – por numerosos que sejam – não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (…). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo”.

É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 – antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade. Uma verdadeira refundação do comunismo no século XXI não pode se privar da mensagem revolucionária, marxista, democrática, socialista e libertária de Rosa Luxemburgo. 


Artigo publicado no jornal Combate em março de 2003.