Marxismo contra Totalitarismo

Ilustração de Nuno Saraiva no "Combate Ilustrado"

Nos colóquios e seminários, nos artigos e tribunas, uma tese foi fazendo  caminho até adquirir a categoria de um lugar comum: é Marx, em pessoa, e  não Estaline ou Lenine, em quem radica o pecado original e a  metamorfose implacável do paraíso socialista num inferno totalitário. O processo instruído contra Marx é uma trama de ignorâncias e inconsistências, convenientemente ligadas. Artigo de Daniel Bensaïd.


Nos colóquios e seminários, nos artigos e tribunas, uma tese foi fazendo caminho até adquirir a categoria de um lugar comum: é Marx, em pessoa, e não Estaline ou Lenine, em quem radica o pecado original e a metamorfose implacável do paraíso socialista num inferno totalitário. Sobre Marx deve recair a responsabilidade de ter reduzido a lei a um simples artificio de dominação, de ter negado a instância jurídica e dissolvido o terreno específico do direito no do poder, de ter liquidado toda a teoria da política e do Estado em beneficio de um vulgar determinismo económico.

Esse grande vazio teórico e institucional ter-se-ia convertido na terra prometida do partido único e polimorfo, a cunha do Estado totalitário que, nos seus próprios princípios, nega e exclui toda a possibilidade de oposição interna à sociedade. Enfim, na mesma raiz do pecado haveria uma dupla ilusão metafísica: na missão emancipadora do proletariado e na ideia da revolução.

O problema é muito importante por várias razões. Em primeiro lugar, porque o estado de sítio decretado contra o marxismo supera amplamente o terreno do torneio ideológico e faz parte de uma ofensiva geral contra a classe operária e os povos oprimidos. Depois, porque uma falsa acusação pode encobrir um problema verdadeiro ou dissuadir-nos de lhe responder, com o conhecido pretexto de não “fazer o jogo” do inimigo.

O processo instruído contra Marx é uma trama de ignorâncias e inconsistências, convenientemente ligadas.

1. É falso que Marx tenha liquidado todo o estatuto específico do político.

Antes de expressar semelhantes barbaridades, havia que ler ou reler algumas páginas da “Crítica da Filosofia do Estado de Hegel” até à “Crítica do Programa de Gotha”, passando pelo “18 Brumário” ou pelos escritos sobre a Alemanha e a guerra de secessão. Seria difícil demonstrar que estes textos não contêm nenhuma teoria do Estado ou que a reduzem a um simples reflexo das relações económicas.

No fundo, a verdadeira reprovação que os seus detractores dirigem contra Marx é mais precisa: acusam-no de ter abandonado o terreno da filosofia política clássica. Esta filosofia consistia na busca de um sistema político que salvara a unidade duma sociedade tendencialmente atomizada pela generalização das relações mercantis e a lei da concorrência. Esta filosofia procurava também critérios de legitimidade que pudessem fazer aceitar um poder particular como encarnação de interesse geral.

As questões que Marx apresenta são efectivamente diferentes: em vez do debate sobre os equilíbrios institucionais, ocupa-se dos fundamentos do Estado, das suas determinações históricas e sociais, ou dito doutra maneira, das suas raízes de classe.

A partir daí, o seu trabalho leva-o a uns caminhos que, ainda que excluam toda a especulação institucional sobre a sociedade futura, são, em todo o caso, profundamente políticos:

– As condições de acesso do proletariado à luta política, quer dizer, as formas organizativas, sindicais e militantes do movimento operário;

– As condições estratégicas da emancipação política do proletariado, quer dizer (a partir da experiência da Comuna), à destruição da velha maquinaria do Estado burguês, que não significa a abolição pura e simples do Estado como tal, mas abre a possibilidade da sua “extinção”.
– As condições económicas e sociais desta extinção que indicam somente uma tendência histórica, cuja forma seria pretensioso querer predeterminar.

Eis aqui uma série de problemas propriamente políticos que não são para os nostálgicos da filosofia clássica, mas manobras de distracção no respeitante á sua inesgotável dissertação sobre a distribuição e o equilíbrio de poderes.

2. É falso que Marx tenha tratado com desprezo ou até com ligeireza as liberdades democráticas elementares.

A obra de Marx é também o seu combate incessante contra os privilégios, as desigualdades, o despotismo e em favor das liberdades civis, pelos direitos de organização e de expressão, pela libertação das mulheres e pela autodeterminação dos povos oprimidos. Os que querem fazer de Marx o pai fundador do “totalitarismo” vêem com satisfação o seu escrito sobre a “Questão Judaica” o “manifesto” e o “breviário” do aprendiz de ditador. Sem dúvida, é neste mesmo texto onde Marx salienta o carácter do património indispensável das conquistas democráticas burguesas, analisando a sua relatividade e os seus limites. Neste texto qualifica a “emancipação política” burguesa como um “grande progresso”, “a última forma de emancipação humana nas condições actuais”.

O que Marx questiona é, precisamente, “a imperfeição da emancipação política”, não para lhe negar importância, mas para abrir a perspectiva da sua “superação” num sentido que implique a conservação e a transformação qualitativa dessas liberdades.
Estes limites teóricos da democracia política burguesa não vão a tardar em encontrar a sua verificação prática nas revoluções de 1848, sobretudo nas “jornadas de junho”, que traçam entre o proletariado e a burguesia uma fronteira sangrenta.

“Marx – diz Ernst Bloch – projecta uma luz muito mais cálida também sobre os direitos do homem. Demonstrou que têm um conteúdo de classe burguês – e fê-lo com uma claridade inigualável. Mas têm também um conteúdo de futuro, que todavia não tinha base. Tinha descoberto que a propriedade privada é determinante entre os demais direitos do homem; mas isto não supunha que os demais direitos se encontrem truncados, suspensos. Quando caracteriza a propriedade privada como um limite burguês no interior dos direitos do homem, acaso Marx rechaça a liberdade, a resistência do povo à opressão, a segurança e tantas outras declarações do estado de justiça? De nenhuma maneira… A liberdade não é criticada por Marx: pelo contrário, são os direitos do homem os que, graças ao seu ímpeto e à sua humanidade lhe permitem criticar a propriedade privada.”(1)

3. É falso que Marx tenha reabsorvido a esfera própria do direito na arbitrariedade sem limites do poder.

O direito, tal como o Estado, entanto que esfera específica institucionalizada, não é abolido pela revolução proletária. Tende somente a extinguir-se. Desde o “Manifesto Comunista”, Marx situa o futuro do direito, como o da moral e da religião, numa perspectiva histórica: “essas formas de consciência só desaparecerão completamente com o completo desaparecimento dos antagonismos de classe”, quer dizer no horizonte da sociedade comunista.

Em “Crítica do Programa de Gotha”, Marx regressa à questão com uma profundidade que escapa totalmente aos seus detractores. O directo é desigual porque é incapaz de definir uma igualdade efectiva entre os indivíduos concretos, considerados no conjunto das suas determinações sociais. Para os poder medir, este direito é obrigado a reduzi-los a uma abstracção jurídica, do mesmo modo que o salário reduz o trabalho concreto ao trabalho abstracto e a força de trabalho viva a uma mercadoria.

Esta igualdade jurídica formal é, em todo caso, um progresso considerável. Só poderia ser superada numa sociedade de abundância, na qual as diferenças entre os indivíduos contribuam directamente para a plenitude da criatividade colectiva, em vez de serem transformadas pelo mecanismo da concorrência em desigualdades e humilhações. Por isso, diz Marx, “o horizonte do direito burguês” só poderá ser superado “na fase superior da sociedade comunista”. Estamos pois muito longe da simples negação do direito.

Diversidade da classe, pluralismo, representação.

Foi Fichte, e não Marx, que propôs a dissolução do Estado no “reino da razão” e do direito na moralidade. Foi a burocracia estalinista, e não Marx, que decretou realizada a unidade sem fissuras do proletariado e a identidade da sociedade com o Estado, que esmagou as contradições da consciência colectiva em movimento sob o imperativo da Razão de Estado, que fundiu dentro do direito público todas os ramos do direito. Marx via a extinção do Estado, do direito, da família, como um longo processo, marcando a passagem da era da necessidade (do trabalho forçado) à era da liberdade, da pré-história à história.

Enquanto a transparência das relações sociais não for efectivamente realizada, mas decretada de um modo autoritário, não havendo lugar para a contradição, para a divergência, para a pluralidade de opiniões; toda a diferença transforma-se em delito ou em desvio. Sem dúvida, Marx tinha percebido claramente a dialéctica histórica da consciência de classe no movimento da auto-emancipação do proletariado: nenhum partido, no sentido “efémero” do termo, pode pretender encarnar a totalidade do “partido no sentido histórico”, quer dizer, a soma das experiências da classe, com toda a sua diversidade. Mais ainda, a manutenção das grandes divisões entre o campo e a cidade, o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre homens e mulheres, não cessam de se nutrir de maneira incessante das diferenciações sociais objectivas no próprio da classe.

A posição de Lenine no debate sobre a questão sindical na URSS, em 1921, demonstra que ele também era consciente da necessidade de mecanismos institucionais que garantissem a formulação e a expressão de necessidades diferentes no seio da classe, consciente também da incapacidade do Estado em representar e unificar estas necessidades, às vezes contraditórias.

Enfim, Trotsky pôde contribuir nalguns textos dos começos dos anos vinte – sobretudo “Terrorismo e Comunismo” e mesmo “Novo Curso” -, para a confusão entre a excepção e a regra, para a justificação da arbitrariedade do poder, em nome da adequação do postulado entre a classe histórica e o poder que a representa plenamente. Mas também se lhe deve o mérito de ter clarificado teoricamente e sistematizado, através da análise da deterioração burocrática, o que em Marx e Lenine eram somente intuições fragmentárias.

Em “A Revolução Traída”, Trotsky defende o princípio do pluripartidarismo numa sociedade de transição ao socialismo, em função “da diversidade do proletariado”: “porque a consciência de uma classe não responde exactamente ao seu lugar na sociedade”, “porque uma classe está desgarrada por antagonismos internos”, ela pode “formar vários partidos”.

Esta constatação tem importantes consequências. Efectivamente, o reconhecimento do directo à pluralidade de partidos implica necessariamente a distinção entre esses partidos e o aparelho de Estado, assim como uma definição institucional das suas condições de funcionamento, de expressão, de participação no exercício do poder; dito de outra maneira, implica um direito público distinto do poder, uma verdadeira legalidade na fase de transição.

Há que fazer notar sobre esta questão que a forma em que se apresenta frequentemente a alternativa entre democracia directa e democracia representativa obscurece o problema. É certo que Lenine e a Internacional Comunista rechaçaram toda a tentativa de conciliação entre as formas de democracia soviéticas (comités, conselhos) e as formas parlamentares da democracia representativa. À luz da revolução russa, o núcleo deste debate contra Kautsky ou os austro-marxistas teve um carácter estratégico: tratava-se de saber qual dos dois poderes, em presença de uma crise revolucionária, sairia vitorioso; enquanto os reformistas se esforçavam por salvar o Estado burguês tolerando formas soviéticas, ao não poder eliminá-las, na condição de as subordinarem à ala soberana das instituições parlamentares.

Mas a partir disto, os detractores da democracia socialista e apologistas da democracia parlamentar pretenderam tomar à letra a noção de democracia directa, a qual, ao negar toda a forma de representação, só poderia engendrar uma soma contraditória de interesses corporativos, extraindo-lhes o mínimo denominador comum. A democracia directa seria incapaz de produzir uma visão de conjunto e uma vontade geral coerentes. Assim impotente, ela abriria necessariamente o caminho para o partido único e totalitário que se imporia à atomização dos organismos fechados no horizonte limitado da sua empresa, do seu bairro ou da sua povoação.

A democracia directa não é necessariamente uma pirâmide que funciona unilateralmente da base ao topo, em detrimento de toda a síntese. Lenine era partidário da revocabilidade dos eleitos, mas não deduzia daí o princípio do mandato imperativo. O mandato imperativo paralisaria a discussão e a modificação recíproca dos pontos de vista através da sua inserção numa visão colectiva mais ampla. Além disso, um sistema de democracia directa não é necessariamente um sistema inarticulado, sem mediações, que actua por adição das necessidades parcelares; pode ser um mecanismo para a opção entre as grandes alternativas políticas, económicas e sociais, na condição de que existam mediações que permitam elaborar essas alternativas. Esta é precisamente a função do pluralismo, que tome a forma de pluralidade de partidos ou da existência de correntes ou tendências dentro de um mesmo partido (ainda que o direito de tendência não seja nada sem o direito à separação), ou da existência de um sindicalismo democrático independente do Estado.

Ora, por definição, a organização em partido político introduz inevitavelmente um certo grau de “representação” do todo pela parte que se constitui em seu intérprete. A antinomia entre democracia directa e democracia representativa apresenta-se frequentemente de um modo abstracto, desde um ponto de vista exclusivamente institucional, sem cuidar de relacionar o sistema de mediações políticas com a organização das relações de produção. Lenine tinha razão quando rechaçava radicalmente todo o compromisso, toda a tentativa de “democracia mista” que, no marco das relações de produção capitalistas baseadas na propriedade privada dos meios de produção e na lei do mercado, salvaguarda e legitima sob uma forma parlamentar a ditadura da classe dominante.

Mas uma vez destruída a “velha maquinaria” do Estado burguês, expropriados e socializados os meios de produção e regida a economia pela planificação, então os mecanismos de representação se inseriam num contexto novo: a democracia mista que reivindicam, por exemplo, Agnes Heller e Ferenc Feher tem um sentido totalmente diferente na base de uma economia planificada. É falso igualmente voltar aos debates do Solidarnosc polaco, em 1981, sobre a instauração do bicamarismo com a formação de uma câmara económica composta por delegados dos conselhos de fábrica, como uma intenção de ressuscitar o velho parlamentarismo.

Estas reivindicações democráticas institucionais, como todas as reivindicações democráticas (liberdade de imprensa e de organização) num Estado burocrático post-capitalista, encarregam-se muto rapidamente de um conteúdo social concreto: em vez de restabelecer uma representação formal, sobre cujos ombros a propriedade privada continua ditando a sua lei, estas reivindicações abrem a via par a livre associação dos trabalhadores e apara a socialização efectiva da produção.

Porque chegou mais longe na sua análise e crítica da degeneração burocrática, Trotsky foi o primeiro a compreender profundamente a sorte de uma sociedade devorada pelo Estado: “O Estado sou eu!” é quase uma fórmula liberal em comparação com as realidades do regime totalitário de Estaline. Luis XIV não se identificava senão com o Estado. Os papas de Roma identificavam-se com o Estado e com a Igreja… O Estado totalitário vai para além do “cesaro-papismo”, porque abarca toda a economia do país. Diferentemente do rei Sol, Estaline pôde dizer com razão: “A sociedade sou eu!'” [2]

Era necessário chegar tão longe para poder traçar uma fronteira definitiva entre revolução e contra-revolução, entre marxismo revolucionário e totalitarismo burocrático.

Legalidade da transição, direito, moral.

O estatuto do direito, da moral, do conhecimento e a sua autonomia relativa quanto ao poder, inscrevem-se logicamente nesta legalidade de transição.

A economia planificada inicia uma socialização progressiva da produção, mas não suprime de um golpe as relações mercantis que sobrevivem submetidas à coerção e controle do plano: o acesso ao consumo não está, nem pode estar planificado. Passa pela mediação de um rendimento que conserva a forma de salário. O indivíduo continua a ter parcialmente uma vida dupla, como produtor e como consumidor, cuja reconciliação supõe ainda e sempre mediações políticas. Isto é o que Pasukanis tinha dito: “No actual período de transição, o proletariado deve utilizar no seu próprio interesse de classe essas formas herdadas da sociedade burguesa e deste modo esgotá-las até ao fim… O proletariado deve adoptar uma atitude sensata e crítica não somente face ao Estado a à moral burguesa, mas também ao seu próprio Estado proletário.” [3]

Compreendendo o enraizamento do direito nas relações mercantis, Pasukanis afirma que o direito não pode ser suprimido mas que deve extinguir-se. Mas limita esta compreensão ao que é comum chamar-se “direito privado”, sem tirar todas as consequências da sua afirmação sobre o direito público e as instituições. O seu silêncio nesta matéria permite, paradoxalmente, à burocracia estalinista condená-lo como um “esquerdista”, no mesmo momento em que esta burocracia vira as costas a Marx proclamando a necessidade do reforço do Estado e quando o seu “homem de mão” Vichynski (o fiscal estalinista dos processos de Moscovo) se dedica a teorizar o “direto socialista” como um sistema de normas deduzidas da vontade da classe dominante (o proletariado). Este determinismo sociológico evacua da passagem à questão decisiva: quem interpreta esta vontade e quem garante a autenticidade desta interpretação?

Com Vichynski o direito soviético já não é um direito burguês depurado, mas um direito de novo tipo, cuja definição tautológica postula a transparência das relações sociais: o direito é agora “a totalidade das regras de conduta humana estabelecidas pelo Estado, em tanto que poder da classe dominante”. Fundando em última instância a legitimidade deste direito sobre uma metafísica do instinto de classe, interpretada directamente pelo partido único ou pelo seu chefe, erige em regra a arbitrariedade e a opressão.

É interessante considerar o dilema histórico de um filósofo instruído pela dupla experiência do nazismo e do estalinismo. Cada palabra de Ernst Bloch cobra a este propósito todo o seu peso de tragédia e lucidez: “Não há nenhuma forma segura de Estado – enquanto este existir em geral – que não deva manter num lugar de honra a democracia, como homenagem do vicio à virtude que representa o Estado burguês de direito; evidentemente, o mesmo se pode dizer quando se trata de uma autêntica virtude, que só o Estado utiliza como meio para o fazer extinguir. Se o formalismo jurídico, tão dissimulador como vazio, desaparecer, não se deduz que com o conteúdo que já não necessita de máscara, desapareça também a forma jurídica democrática, que agora já não comporta vazio, nem imperfeição. O Estado burguês de direito, que reproduzia os direitos do homem burguês, desaparecerá com o Estado burguês, mas os direitos do homem burguês não podem desaparecer na construção socialista, especialmente porque estes direitos só se podem realizar na medida em que não são burgueses. Não é possível entrar no socialismo com o Estado de direito burguês por cima de pobres e ricos, na medida em que este é um instrumento formal, ideológico e, ao fim de contas, falacioso. Mas se estamos no socialismo, um de seus sinais será que se recolheu, limpou e içou a bandeia dos direitos do homem que o Estado burguês de direito tinha utilizado mal e o Estado de ilegalidade fascista, em tanto que despotismo, aniquilou.” [4]

Bloch afirma e mantém os direitos do homem como “depositário utópico concreto de uma promessa que só pode realizar a revolução real”. Neste sentido, eles vão “muito mais além do horizonte burguês”. Este humanismo crítico volta a Marx, não nos distancia dele. Portanto, para salvar a necessidade de um direito de transição contra os abusos burocráticos, Bloch não encontra outra solução que recuperar a velha trincheira do direito natural face ao direito positivo. O referente deste direito natural escapa à história: reside num postulado ético absoluto, o da dignidade.

Retomando a expressão de Brecht que “o ser humano, e não somente a sua classe, rechaça que o tratem com patadas”, Bloch apela ao recurso do “ser humano”, na sua generalidade abstracta e recai na velha antinomia do indivíduo e da colectividade.

A sua conclusão, “não há democracia sem socialismo, nem socialismo sem democracia”, não necessitava do tal recurso filosófico nas actuais fronteiras da história. O fundamento de um direito e de uma moral não subordinadas ao poder pode realizar-se na diversidade da própria classe, na dialéctica do universal e do particular que continua a atravessá-la, para além da abolição do capitalismo. A transformação da divisão do trabalho e das mentalidades não anda, em absoluto, ao mesmo ritmo que os decretos sobre a abolição da propriedade privada dos meios de produção e sobre a planificação da economia.

A sorte da moral está ligada em grande medida à do direito. Na sociedade capitalista é preciso que a mão esquerda do burguês possa ignorar o que faz a mão direita. Desde que as relações entre os indivíduos são regidas por um direito que perdeu os seus atributos divinos ou naturais, abre-se a possibilidade de um refúgio onde se resguardem os direitos subjectivos e a liberdade e consciência. Laicizada, a moral mantém as sus distâncias com as peripécias do direito positivo.

Bloch afirma que uma sociedade só poderia prescindir deste “refúgio interior” no dia em que “já não haveria razão para se opor a uma sociedade verdadeiramente boa”. Uma interpretação vulgar pretende que o marxismo tenha abolido este refúgio do julgamento autónomo, com a fragilidade de todas as suas incertezas e ambiguidades, impondo-lhe uma norma externa e universal: a subordinação do fim aos meios. A ideia de que tudo é permitido para um ateu poderia dar vertigens a Dostoievski. Plekanov, Lenine, Trotsky são o contrário dos cínicos ou dos demagogos. Eles sabiam distinguir as manobras e os truques inevitáveis da política face a inimigos poderosos e sem escrúpulos, de uma conduta moral cujos critérios são rigorosos e vinculativos.

Esta moral prática acomoda-se mal com os compromissos quotidianos entre a intenção e a acção, entre a vida privada e a vida pública. Não beneficia das indulgências do confessional. Ela não propõe nenhuma espécie de purgatório. Os seus critérios, por serem imanentes ao processo histórico, não são menos exigentes. Têm como bússola o despertar e a elevação da consciência colectiva do proletariado. É por isso que Lenine levava tão a sério a sua fórmula de que “só a verdade é revolucionária”. É por isso que Trotsky considera moral “tudo o que contribui para aumentar o poder do homem sobre a natureza e abolir o poder do homem sobre o homem”. É por isso que Che Guevara deu às “virtudes” desvalorizadas pela burguesia – a coragem, a honestidade, a abnegação – um conteúdo histórico novo e concreto.

A mediação prática da luta de classes, o famoso “critério da prática”, apreciado por Lenine, tende a fazer coincidir a política e a moral, o julgamento de facto e o julgamento de valor. Não obstante, há uma longa distância entre a tendência e a sua conclusão. A moral, como o direito, não se dissolve imediatamente na política, nem sequer no direito. Ela permanece inscrita na distância entre o todo e a parte, entre a classe e o partido (incluso o mais revolucionário), entre a humanidade emancipada e a classe que somente começa a libertar-se das suas correntes. Mesmo desembaraçada da religião, assinalava Pasukanis, na moral continua a ser uma moral, uma interpretação subjectiva e íntima dos interesses históricos. Mesmo que a moral não possa ignorar as suas amarras sociais e políticas, continua, em nome de uma antecipação histórica, a exercer sobre elas uma tensão saudável.

Recusando um despotismo ilustrado de novo tipo que só perceberia as pessoas através da sua classe, que as reduz ao estado de simples recipientes ou de acidentes desta classe erigida em essência, Bloch expulsa a metafísica que acompanha o marxismo burocratizado. “Toda a substituição recíproca da moral e da política não é autêntica… Há na consciência moral, apesar de todos os abusos que foram cometidos, bastantes elementos que pertencem ao amanhã e ao depois de amanhã. Que julguem a poeira e a hipocrisia em que se converteu a moral, porque quem, se não a moral, poderia ser juiz da hipocrisia?” [5]

Bloch justifica a actualidade e o futuro de uma ética, como também do direito, em nome do conflito não resolvido entre o indivíduo e a comunidade, quando reenviam concretamente para o excedente histórico da classe sobre as suas representações efémeras e, mais além, do humano sobre a classe. Para Marx, desde os “Manuscritos de 1844”, a identificação perfeita do indivíduo com a sociedade, a humanidade plenamente socializada não é senão um horizonte histórico que supõe que todos os homens e mulheres, na sua existência particular, têm uma relação consciente com o género humano. Que haja definido depois os primeiros passos e os meios políticos para avançar nesse caminho, não autoriza nenhum atalho que permita alcançar de um só salto os limites deste horizonte.

Ciência, saber, consciência.

Os que querem ver no marxismo a fonte lógica do totalitarismo, tomam de Hannah Arendt o material do seu discurso. Segundo Arendt, o pecado original parte da teoria do conhecimento. Se existe uma racionalidade da história, uma racionalidade exaustiva do real histórico regida por um princípio de casualidade, então o partido é um revelador científico todo-poderoso.

Esta tese supõe, uma vez mais, passar ao lado de Marx sem ver, sem medir a ruptura com Hegel, nem a distância que o separa do positivismo. A burocracia dirigiu a Razão de Estado contra a consciência histórica. Reabilitou o racionalismo abstracto no mesmo momento en que se fundia no delírio do terror. Esta burocracia travestiu o “socialismo científico” em “ciência socialista”. Assassinou Marx em nome de Marx. Acreditando na sua super-querida, Raymound Aron ou Castoriadis, sob uma aparente intransigência democrática, fazem-lhe um excelente serviço: eles autentificam a usurpação.

O marxismo revolucionário e militante não tem nostalgia da ciência exacta. Não tem necessidade de uma verdade absoluta ou revelada.

Enraizado na história que se faz, é um saber revolucionário, uma teoria crítica, uma interpretação corrigida incessantemente, “uma verificação indefinida”. O futuro que o marxismo revolucionário trata de varrer não é uma fatalidade, mas uma probabilidade. Do ponto de vista da acção a realizar, esta probabilidade é real. A racionalidade histórica não é formal e unívoca, mas aberta e dialéctica. Inscrito nesse horizonte, o partido revolucionário não é uma reedição tecnocrática do “grande relojoeiro”, nem uma reencarnação do sujeito plenamente lúcido e unificado da psicologia clássica. É o difícil nó entre umas condições herdadas e um projecto, entre a acção e a consciência, entre o objectivo e o subjectivo. A sua mediação não deixa os dois termos desunidos e intactos.

Esta é a razão por que, se não se pode pretender dizer “a verdade sobre a verdade”, pode traduzir em actos uma parte desta verdade histórica na qual se encontra “em exclusão interna”. Na invenção democrática, Lefort destaca a tendência de toda a sociedade ao materializar o poder, “ao dar-lhe corpo ou incorporá-lo”.

Do monarca absoluto ao pequeno “pai dos povos” (Estaline), passando por todas as variantes militares ou presidenciais do bonapartismo, as figuras desta “incorporação” não faltam. Acusado de levar dentro de si o totalitarismo, o marxismo lança, ao contrário, o repto mais radical a toda a forma de encarnação do poder. Traçando a perspectiva da deterioração do Estado, ele prevê o exercício transitório de um poder deslocalizado e “desincorporado”, de uma democracia social que marcaria realmente a saída da nossa pré-historia religiosa e mitológica. Nada de assombroso que um tal salto implique uma revolução nos conceitos de saber ou de verdade. Só uma visão não religiosa da história permite actuar responsavelmente, comprometer-se e lutar, tomar em caso necessário os riscos mais extremos, na base de convicções e da verdade que Lenine chamava “relativas”; quer dizer, sem necessidade de se dopar com qualquer absoluto que seja.

Arrancado das desfigurações e difamações, o marxismo revolucionário é um anti-totalitarismo radical.


* Daniel Bensaid faleceu há um ano. Foi filósofo, militante político e figura incontornável da história da IV Internacional. Este texto foi publicado na revista “Critique Communiste”, em Agosto de 1983. Tradução: António José André.

Notas:

[1] Ernest BLOCH, Droit naturel et dignité humaine, Paris, Payot.
[2] Léon TROTSKY, Staline, Paris, Grasset 1948.
[3] Eugène PASUKANIS, La Théorie générale du droit et le marxisme, Paris, EDI 1970.
[4] Ernst BLOCH, op. cit.
[5] Ernst BLOCH, op. cit.