A nova fase da crise capitalista – Para uma regulação caótica

Foto Paulete Matos

O novo mapa da estrada da crise na Europa está bastante claro: trata-se de fazer pagar a factura da crise aos assalariados. Este artigo de Michel Husson aborda a trajectória da crise nos últimos anos, caracteriza os dilemas da fase actual e apresenta os desafios estratégicos deste novo período.


1. A crise do capitalismo neoliberal

Não se compreenderia nada sobre a crise actual sem fazer uma pequena retrospectiva. O ponto de partida é a crise dos anos 70 que marca o fim dos “trinta gloriosos”. Como as políticas habituais não eram capazes de fazer funcionar o sistema, opera-se a grande mudança neoliberal dos anos 80. Vivemos por conseguinte desde há 30 anos (os “trinta lamentáveis”?) num regime de capitalismo neoliberal que se pode caracterizar por três elementos determinantes:
1. Redução da massa salarial e incremento da taxa de lucro
2. Dinâmica divergente entre lucros e investimentos
3. Subida dos dividendos

Por isso, a imagem da economia capitalista antes da crise é a de uma enorme massa de “capitais livres” alimentada pela compressão dos salários e pelos desequilíbrios internacionais.
Graças à desregulação financeira, estes capitais circulam livremente à procura de uma hiper-rentabilidade, que as condições concretas de produção de mais-valia podem garantir apenas virtualmente.
Assim é lógico que esta fuga em frente se desenvolva na esfera financeira, mas isso não implica que se trate de uma crise estritamente financeira. Designar que a crise é fruto da desregulação financeira supõe ignorar as suas causas profundas.
A crise actual deve ser entendida como a crise do modelo neoliberal que descrita anteriormente; um modelo posto em pé para dar solução à crise anterior. Sendo coerente, este modelo, cujos elementos constituíam todo um sistema, era ao mesmo tempo um modelo que gerava desigualdades, frágil e desequilibrado. Mas, aos olhos das classes dominantes, tinha a vantagem de lhes permitir captar uma parte crescente das riquezas produzidas. O mais importante é que este modelo já não pode funcionar, mas os capitalistas não têm outra solução. Entramos num período dominado totalmente por esta contradição: tudo o que se faz tem por objectivo voltar ao business as usual, mas já não é possível.

2. A crise: fase 3. Para uma regulação caótica

Não se trata de prever a via concreta que o capitalismo vai adoptar nos próximos anos, mas de apresentar um quadro do conjunto das contradições com as quais ele vai ser confrontado. Vamos resumi-las sob a forma de quatro “dilemas” que configuram a “regulação caótica” que corresponde ao movimento do capitalismo entre duas impossibilidades: a impossibilidade (e a recusa) de voltar ao capitalismo relativamente regulado dos “30 gloriosos” por um lado; e a impossibilidade de restabelecer as condições de funcionamento do modelo neoliberal, porque este modelo baseava-se numa fuga para a frente já esgotada. Este impasse sem saída resume-se, uma vez mais, assim: o capitalismo quer voltar ao seu funcionamento anterior à crise, mas isso é impossível.

Dilema da repartição: restabelecimento da rentabilidade ou emprego? A crise interrompeu brutalmente a tendência do amento dos lucros. Esta degradação explica-se em grande parte pela evolução da produtividade do trabalho, que fortemente se reduziu na medida em que os efectivos apenas se ajustaram parcialmente ao retrocesso da produção. Mas, sob o fogo da concorrência, as empresas vão procurar restabelecer os seus lucros, quer ajustando os efectivos, quer congelando ou mesmo reduzindo os salários. Ao mesmo tempo, os dispositivos como o desemprego parcial atingirão gradualmente o seu limite de validade, assim como as ajudas para relançar a produção. Uma das preocupações dos organismos internacionais é pôr fim às medidas de urgência que se aprovaram no início da crise. Este ajustamento do emprego e dos salários vai desencadear um novo anel recessivo devido á contracção dos rendimentos das famílias.

Dilema da globalização: reabsorção dos desequilíbrios ou crescimento mundial? Um dos principais motores da economia mundial, antes da crise, foi o consumo excessivo das famílias nos Estados Unidos. Esta situação dificilmente será reconduzida. A “desfinanciarização” começada com o aumento recente da taxa de poupança conduz a uma nova contradição, porque a redução do consumo significa, também, um crescimento menos dinâmico para o conjunto da economia.A solução escolhida é reorientar a economia americana para a exportação, mas esta opção supõe a melhoria da competitividade das exportações norte-americanas, que pode ser obtido apenas graças a uma desvalorização acrescida do dólar.

Mais recentemente, foi tomada a decisão de injectar massivamente dinheiro (quantitative easing). Mas esta orientação pode apenas incrementar os desequilíbrios da economia mundial. Se a baixa do dólar tiver êxito, isso pesará sobre o já débil crescimento na Europa. E ligada à criação monetária imporá uma reavaliação das moedas dos países emergentes, fraccionando ainda mais a economia mundial.

Dilema orçamental: reabsorção dos défices ou despesas sociais? A crise e os planos de relançamento conduziram a um incremento considerável dos défices que, os governos europeus sobretudo, decidiram reabsorver sem adoptarem nenhuma medida para estar ao abrigo da ofensiva dos mercados financeiros. É o que anunciou Trichet, em 2009: “o processo de ajustamento estrutural deverá começar, o mais tarde, durante a recuperação da actividade económica”. Em 2011, haverá que intensificar os esforços. Mas, esta opção supõe condenar a Europa a um débil crescimento e à regressão social.

Dilema europeu: coordenação ou cada qual com o seu? A Europa está em vias da implosão como entidade económica. O processo de fraccionamento começou bastante antes da crise, mas agora passou o umbral na medida em que os diferentes países da UE sofrem de forma desigual a crise, em função do peso relativo da finança, do sector imobiliário e do automóvel na sua economia e na sua inserção no mercado mundial. Uma verdadeira política económica coordenada não está na ordem do dia, muito menos quando a União Europeia se privou voluntariamente das instituições que a poderiam levar a cabo: não existe um orçamento comum, nem uma coordenação fiscal. A Europa da concorrência “livre e não falseada” está condenada a que cada país vá pelo seu caminho e assistimos a um verdadeira queda do actual modelo de construção europeu.

3. Algumas implicações estratégicas

Depois da dívida privada ter passado a pública, o objectivo actual é fazê-la ser paga pelos trabalhadores e trabalhadoras. Esta terapia de choque materializa-se através de planos de austeridade construídos no mesmo modelo: redução dos gastos socialmente úteis e aumento dos impostos mais injustos. Face a esta violência social, não há outra alternativa que fazer pagar aos accionistas e credores os custos do resgate do sistema. Mas agora o que devem pagar as trabalhadoras e os trabalhadores europeus é, também, a queda do projecto burguês da construção europeia.

Do ponto de vista da classe trabalhadora, as tarefas imediatas são claras: é necessário fazer frente aos planos de austeridade e refutar o pagamento da dívida soberana, que não é outra coisa que a dívida da crise. O projecto alternativo em nome do qual esta resistência social pode pegar é a exigência de outra repartição da riqueza. Uma tal exigência é coerente com a análise da crise. Efectivamente, é a compressão salarial ou, dito doutro modo, a apropriação de uma parte crescente da mais-valia pelo capital financeiro o que conduziu à enorme acumulação de dívidas que provocaram a crise.

Esta alternativa passa, sobretudo, por uma verdadeira reforma fiscal que ponha fim aos benefícios fiscais que se vêm outorgando desde há anos às empresas e às fortunas. Implica, também, de uma ou doutra maneira, a anulação da dívida pública. A incompatibilidade entre a dívida e os interesses sociais da maioria da população é total. Não pode haver uma saída progressista da crise sem por em questão esta dívida, seja suspendendo-a ou reestruturando-a. Além disso, alguns países vão provavelmente suspendê-la e é muito importância maior ao antecipar-se a esta situação, dizendo como ela deve ser gerida.

A saída do euro permitiria afrouxar a pressão? Esta ideia enfrenta-se com um primeiro problema: o facto de a Grã-Bretanha não fazer parte da eurozona não a preservou da austeridade. Por outro lado, é bastante fácil compreender porque a extrema-direita nacionalista, como a Frente Nacional em França, exige a saída do euro. Em sentido contrário, torna-se mais difícil ver quais poderiam ser os benefícios desta exigência desde um ponto de vista da esquerda radical. Se um governo liberal for obrigado a tomar uma medida semelhante sob a pressão dos acontecimentos, é claro que o faria como pretexto para uma austeridade ainda mais dura que aquela que conhecemos hoje e isto não possibilitaria, mas pelo contrario, melhorar a relação de forças dos trabalhadores e trabalhadoras. Esta é a lição que se pode extrair de experiências passadas.

Para um governo de esquerda, a saída do euro seria, pelo contrário, um verdadeiro erro estratégico. A nova moeda seria desvalorizada. Isso abriria imediatamente uma brecha que seria aproveitada pelos mercados financeiros para desencadear uma ofensiva especulativa sobre ela. O que conduziria a uma espiral de desvalorização-inflação-austeridade. A desvalorização aumentaria bruscamente o montante da dívida, até esse momento estabelecida em euros ou dólares. Por outro lado, todo o governo de esquerda que deseje de verdade adoptar medidas a favor das e dos trabalhadores estaria confrontado com fortes pressões do capitalismo internacional. De um ponto de vista táctico, valeria mais, nesta prova de forças, utilizar de forma conflitual a pertença à zona euro.

Que fazer nesta conjuntura extremamente difícil? Mais do que assinalar as diferenças, certamente reais, entre a situação dos diferentes países, o repto está em construir uma orientação internacionalista sobre a crise na Europa. É o único meio de se opor verdadeiramente à ascensão da extrema-direita, propondo diferentes objectivos às habituais “cabeças de turco” É, também, o meio para afirmar uma verdadeira solidariedade internacional com os povos mais debilitados pela crise, exigindo que as suas dívida sejam repartidas a nível europeu. É necessário opor um projecto alternativo ao projecto burguês europeu que conduz todos os países a uma regressão social.

A tarefa é difícil, como no período da crise que a abriu. Mas a esquerda radical não se deve encerrar entre a opção impossível de uma aventura arriscada – a saída do euro – e uma harmonização utópica. Deve trabalhar em torno de objectivo intermédios que ponham em causa as instituições europeias actuais,. Objectivos, tais como:

o Que os Estados da União possam pedir empréstimos directamente ao Banco Central Europeu (BCE) a taxas de interesse baixas e que a banca privada seja obrigada a carregar com uma parte da dívida pública.

o Por em pé um mecanismo para a suspensão da dívida, que permita anular a dívida pública em proporção com os benefícios fiscais outorgados às fortunas e ao dinheiro outorgado para salvar os bancos.

o Que o saneamento orçamental passe por uma reforma da fiscalidade orientada para taxar, de forma harmonizada a nível europeu, o movimento de capitais e as transacções financeiras, os dividendos e outros rendimentos do capital, das grandes fortunas e dos grandes salários.

Como seria efectivamente absurdo esperar uma ruptura simultânea e coordenada em todos os países europeus, a única hipótese concebível deve tomar como ponto de partida uma experiência de ruptura num só país. O governo do país em questão deverá adoptar medidas como a instauração de uma taxa sobre o capital, mas, ao mesmo tempo, deverá antecipar medidas de represália contra actividades das quais será vítima, como a instauração de um controle sobre os capitais. Adoptando este tipo de medidas, entraria em conflito aberto com as regras de jogo europeias.

O seu principal ponto de apoio está no carácter solidário das medidas adoptadas. Isto constitui uma enorme diferença em relação ao proteccionismo clássico, que procura sempre melhorar a situação do próprio país pela obtenção da maior cota de mercado face aos outros. As medidas progressistas, pelo contrário, são mais eficazes na medida em que se generalizam a um maior número de países. Portanto, seria preciso falar de uma estratégia de extensão destas medidas baseada no seguinte critério: afirmamos a nossa vontade de taxar o capital e adoptamos as medidas de protecção adequadas. Mas à esperando que estas, tal como as propomos, se estendem ao conjunto da Europa. Conclusão: mais do que enfrentar uma com outra, é preciso reflectir sobre a articulação entre a ruptura com a Europa neoliberal e um projecto de refundação europeia.


* Michel Husson é economista e investigador no Instituto de Investigação Económica e Social (IRES). Tradução: António José André.