A palavra “bárbaro” é de origem grega. Ela designava, na Antiguidade, as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas, atrasadas e brutais. A oposição entre civilização e barbárie é então antiga. Ela encontra uma nova legitimidade na filosofia dos iluministas, e será herdada pela esquerda. O termo “barbárie” tem, segundo o dicionário, dois significados distintos, mas ligados: “falta de civilização” e “crueldade de bárbaro”. A história do século XX obriga-nos a dissociar essas duas acepções e a reflectir sobre o conceito – aparentemente contraditório, mas de facto perfeitamente coerente – de “barbárie civilizada”. Artigo de Michael Löwy
Em que consiste o “processo civilizador”? Como bem demonstrou Norbert Elias, um dos seus aspectos mais importantes é que a violência não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado, mais precisamente, pelas forças armadas e pela polícia. Graças ao processo civilizador, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica concentrada nas mãos do poder político. O que Elias não parece ter percebido é o reverso dessa brilhante medalha: o formidável potencial de violência acumulado pelo Estado… Inspirado por uma filosofia optimista do progresso, ele podia escrever, ainda em 1939: “Comparada ao furor do combate abissínio (…) ou daquelas tribos da época das grandes migrações, a agressividade das nações mais belicosas do mundo civilizado parece moderada (…); ela só se manifesta em sua força brutal e sem limites em sonho e em alguns fenómenos que nós qualificamos de ‘patológicos’”.
Alguns meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma guerra entre nações “civilizadas” cuja “força brutal e sem limites” é simplesmente impossível de comparar com o pobre “furor” dos combatentes etíopes, tamanha é a desproporção. O lado sinistro do “processo civilizador” e da monopolização estatal da violência manifestou-se em toda a sua terrível potência.
Se nós nos referimos ao segundo sentido da palavra “bárbaro” – actos cruéis, desumanos, a produção deliberada de sofrimento e a morte deliberada de não-combatentes (em particular, crianças) – nenhum século na história conheceu manifestações de barbárie tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século XX. Certamente, a história humana é rica em actos bárbaros, cometidos tanto pelas nações “civilizadas” quanto pelas tribos “selvagens”. A história moderna, depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de actos desse género: o massacre de indígenas das Américas, o tráfico negreiro, as guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie “civilizada”, isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados.
Karl Marx era um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas maléficas e destruidoras da modernidade, que para ele estão associadas às necessidades de acumulação do capital. Em O Capital, especialmente no capítulo sobre a acumulação primitiva, encontra-se uma crítica radical dos horrores da expansão colonial: a escravização ou o extermínio dos indígenas, as guerras de conquista, o tráfico de negros. Essas “barbáries e atrocidades execráveis” – que segundo Marx (citando de modo favorável M.W. Howitt) “não têm paralelo em qualquer outra era da história universal, em nenhuma raça por mais selvagem, grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido” – não foram simplesmente passadas aos lucros e perdas do progresso histórico, mas devidamente denunciadas como uma “infâmia”. Considerando algumas das manifestações mais sinistras do capitalismo, como as leis dos pobres ou os workhouses – estas “bastilhas de operários”–, Marx escreveu em 1847 esta passagem surpreendente e profética, que parece anunciar a Escola de Frankfurt: “A barbárie reapareceu, mas desta vez ela é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”.
Mas com o século XX, um limite é transgredido, passa-se a um nível superior; a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de sua ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Nós voltaremos a esse ponto.
A Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da barbárie civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme, em 1914-15: Rosa Luxemburgoo e Franz Kafka. Apesar das suas evidentes diferenças, eles têm em comum o facto de terem tido a intuição – cada um à sua maneira – de alguma coisa sem precedente que estava para se constituir no curso daquela guerra.
Ao usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo em A crise da social-democracia, de 1915 (assinada com o pseudónimo “Junius”), rompeu com a concepção – de origem burguesa, mas adoptada pela Segunda Internacional – da história como progresso irresistível, inevitável, “garantido” pelas leis “objectivas” do desenvolvimento económico ou da evolução social. Essa palavra de ordem é sugerida por certos textos de Marx ou de Engels, mas é Rosa Luxemburgo que dá a ela essa formulação explícita e elaborada. Ela implica uma percepção da história como processo aberto, como série de “bifurcações”, onde o “factor subjetivo” – consciência, organização, iniciativa – dos oprimidos tornam-se decisivos. Não se trata mais de esperar que o fruto “amadureça”, segundo as “leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais.
Porque o outro lado da alternativa é um sinistro perigo: a barbárie. Num primeiro momento ela parece considerar a “recaída na barbárie” como “a aniquilação da civilização”, uma decadência análoga àquela da Roma antiga. Mas logo ela se dá conta que não se trata de uma impossível “regressão” a um passado tribal, primitivo ou “selvagem”, mas antes, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em sua desumanidade assassina que as práticas guerreiras dos conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano. Jamais no passado tecnologias tão modernas – os tanques, o gás, a aviação militar – tinham sido colocadas ao serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão numa escala tão imensa.
As intuições de Kafka são de uma natureza totalmente diferente. É sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie. Trata-se de uma novela intitulada A colónia penal: numa colónia francesa, um soldado “indígena” é condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume em poucas palavras a quintessência do arbitrário: “a culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida!”. A sua execução deve ser cumprida por uma máquina de tortura que escreve lentamente sobre seu corpo com agulhas que o atravessam a frase “Honra os teus superiores”.
O personagem central da novela não é nem o viajante que observa os acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem o comandante da colônia. É a máquina mesma.
Toda a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat), que parece mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para executar o homem, é sobretudo este que está lá pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta ilustrada de “muitos florilégios e ornamentos”. O próprio oficial é apenas um servidor da Máquina e, finalmente, ele mesmo se sacrifica a esse insaciável Moloch.
Em que “máquina de poder” bárbara, em que “aparelho da autoridade” sacrificador de vidas humanas, pensava Kafka? A colónia penal foi escrita em Outubro de 1914, três meses após a eclosão da grande guerra. Há poucos textos na literatura universal que apresentam de maneira tão penetrante a lógica mortífera da barbárie moderna como mecanismo impessoal.
Esses pressentimentos parecem perder-se nos anos do pós-guerra. Walter Benjamin é um dos raros pensadores marxistas a compreender que o progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes sem precedentes. Daí o seu pessimismo – não fatalista, mas activo e revolucionário. Num artigo de 1929 ele definia a política revolucionária como “a organização do pessimismo” – um pessimismo em todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do povo europeu. E acrescenta ironicamente: “confiança ilimitada somente no IG Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe”. Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia adivinhar a que ponto essas duas instituições iriam mostrar, alguns anos mais tarde, a capacidade maléfica e destrutiva da modernidade.
Pode-se definir como propriamente moderna a barbárie que apresenta as seguintes características:
— Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do homicídio. Exterminação em massa graças às tecnologias científicas de ponta.
— Impessoalidade do massacre. Populações inteiras – homens e mulheres, crianças e idosos – são “eliminados”, com o menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas.
— Gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada, “racional” (em termos instrumentais) dos actos bárbaros.
— Ideologia legitimadora do tipo moderno: “biológica”, “higiênica”, “científica” (e não religiosa ou tradicionalista)
Todos os crimes contra a humanidade, genocídios e massacres do século XX não são modernos no mesmo grau: o genocídio dos arménios em 1915, o genocídio levado a cabo pelo Pol Pot no Camboja, aquele dos tutsis em Ruanda, etc. associam, cada um de maneira específica, traços modernos e traços arcaicos.
Os quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a modernidade da barbárie são o genocídio nazi contra os judeus e os ciganos, a bomba atómica em Hiroshima, o Goulag estalinista e a guerra norte-americana no Vietname. Os dois primeiros são provavelmente os mais integralmente modernos: as câmaras de gás nazis e a morte atómica norte-americana contêm praticamente todos os ingredientes da barbárie tecno-burocrata moderna.
Auschwitz representa a modernidade não somente pela sua estrutura de fábrica de morte, cientificamente organizada e que utiliza as técnicas mais eficazes. O genocídio dos judeus e dos ciganos é também, como observa o sociólogo Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador como racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral. “Como toda outra acção conduzida de maneira moderna – racional, planificada, cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada – o Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e ineficazes. (…) Ele eleva-se muito acima dos episódios de genocídio do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem acima da oficina artesanal…”.
A ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo moderno, pseudo-científico, biológico, antropométrico, eugenista. A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais é característica do discurso anti-semita dos dirigentes nazis, o que pode ser notado nas conversações privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: “A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças não tiveram a sua origem no vírus judeu… Nós não encontraremos a nossa saúde sem eliminar os judeus”.
No seu notável ensaio sobre Auschwitz, Enzo Traverso destaca, com palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do genocídio. Não se trata nem de uma simples “resistência irracional à modernização”, nem de um resíduo de barbárie antiga, mas de uma manifestação patológica da modernidade, do rosto escondido, infernal, da civilização ocidental, de uma barbárie industrial, tecnológica, “racional” (do ponto de vista instrumental). Tanto a motivação decisiva do genocídio – a biologia racial – quanto as suas formas de realização – as câmaras de gás – eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de extermínio nazis uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, “a organização científica do trabalho” de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber.
Este último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação da razão ocidental em força destrutiva. A sua análise da burocracia como máquina “desumanizada”, impessoal, sem amor nem paixão, indiferente a tudo aquilo que não é sua tarefa hierárquica, é essencial para compreender a lógica reificada dos campos da morte. Isso vale também para a fábrica capitalista, que estava presente em Auschwitz, ao mesmo tempo nas oficinas de trabalho escravo da empresa IG Farben e nas câmaras de gás, lugares de produção “em cadeia” de mortos. Mas a “solução final” é irredutível a toda a lógica económica: a morte não é nenhuma mercadoria, nenhuma fonte de lucro.
Traverso critica, de maneira muito convincente, as interpretações – inspiradas, num grau ou outro, pela ideologia do progresso – do nazismo e do genocídio como produto da história do irracionalismo alemão (Georges Lukács), de uma “saída” da Alemanha para fora do berço ocidental (Jurgen Habermas) ou de um movimento de “descivilização” (Entzivilisierung) inspirado por uma ideologia “pré-industrial” (Norbert Elias). Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolização pelo Estado da violência – como o mostram, depois de Hobbes, tanto Weber quanto Elias – é necessário reconhecer que a violência do Estado está na origem de todos os genocídios do século XX. Auschwitz não representa uma “regressão” em direcção ao passado, em direcção a uma idade bárbara primordial, mas é realmente um dos rostos possíveis da civilização industrial ocidental. Ele constitui ao mesmo tempo uma ruptura com a herança humanista e universalista dos iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e destrutivas de nossa civilização.
Se o extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich é comparável a outros actos bárbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento singular. É necessário recusar as interpretações que eliminam as diferenças entre Auschwitz e os campos soviéticos, ou os massacres coloniais, os pogroms, etc. O crime de guerra que tem mais afinidades com Auschwitz é Hiroshima, como compreenderam tão bem Gunther Anders e Dwight MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de morte formidavelmente moderna, tecnológica e “racional”. Mas as diferenças são fundamentais. Inicialmente, as autoridades americanas não tiveram jamais como objectivo – como as do Terceiro Reich – realizar o genocídio de toda uma população: no caso das cidades japonesas, o massacre não era, como nos campos nazis, um fim em si mesmo, mas um simples “meio” para atingir objectivos políticos. O objectivo da bomba atómica não era o extermínio da população japonesa como fim autônomo. Tratava-se sobretudo de acelerar o fim da guerra e demonstrar a supremacia militar americana face à União Soviética. Num relatório secreto de Maio de 1945 ao presidente Truman, o Target Committee – o “Comitê de Alvo”, composto pelos generais Groves, Norstadt e do matemático Von Neumann – observa friamente: “A morte e a destruição irão não somente intimidar os japoneses sobreviventes a fazer pressão pela capitulação mas também (o bónus) assustar a União Soviética. Em síntese, a América poderia terminar mais rapidamente a guerra e, ao mesmo tempo, ajudar à moldar o mundo do pós-guerra”. Para obter esses objectivos políticos, a ciência e a tecnologia mais avançadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis inocentes, homens, mulheres e crianças foram massacrados – sem falar da contaminação pela irradiação nuclear das gerações futuras.
Uma outra diferença com Auschwitz é, sem dúvida, o número bem inferior de vítimas. Mas a comparação das duas formas de barbárie burocrático-militar é muito pertinente. Os próprios dirigentes americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazis: numa conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o secretário de Estado, Stimson, relatava os seus sentimentos: “Eu disse-lhe que estava inquieto com esse aspecto da guerra… porque eu não queria que os americanos ganhassem a reputação de ultrapassar Hitler em atrocidade”.
Em muitos aspectos, Hiroshima representa um nível superior de modernidade, tanto pela novidade científica e tecnológica representada pela arma nuclear, quanto pelo carácter ainda mais distante, impessoal, puramente “técnico” do acto exterminador: pressionar um botão, abrir a escotilha que liberta a carga nuclear. No contexto próprio e asséptico da morte atómica entregue pela via aérea, deixou-se para trás certas formas manifestamente arcaicas do Terceiro Reich, como as explosões de crueldade, o sadismo e a fúria assassina dos oficiais da SS. Essa modernidade encontra-se na cúpula norte-americana que toma – após ter cuidadosa e “racionalmente” pesado os prós e os contras – a decisão de exterminar a população de Hiroshima e Nagasaki: um organograma burocrático complexo composto por cientistas, generais, técnicos, funcionários e políticos tão cinzentos quanto Harry Truman, em contraste com os acessos de ódio irracional de Adolf Hitler e seus fanáticos.
No curso dos debates que precederam a decisão de lançar a bomba, certos oficiais, como o general Marshall, declararam ter reservas, na medida em que eles defendiam o antigo código militar, a concepção tradicional da guerra, que não admitia o massacre intencional de civis. Eles foram vencidos por um ponto de vista novo, mais “moderno”, fascinado pela novidade científica e técnica da arma nuclear, um ponto de vista que não tinha nada a ver com códigos militares arcaicos e que não se interessava senão pelo cálculo de lucros e perdas, isto é, em critérios de eficácia político-militar. Seria necessário acrescentar que um certo número de cientistas que tinham participado, por convicção anti-fascista, nos trabalhos de preparação da arma atómica, protestaram contra a utilização das suas descobertas contra a população civil das cidades japonesas.
Uma palavra sobre o Goulag estalinista: se há muito em comum com Auschwitz – sistema concentracionário, regime totalitário, milhões de vítimas – ele distingue-se pelo facto que o objectivo dos campos soviéticos não era o extermínio dos prisioneiros mas a sua exploração brutal como força de trabalho escrava. Por outras palavras: pode-se comparar Kolyma e Buchenwald, mas não o Goulag e Treblinka. Nenhuma contabilidade macabra – como aquela fabricada por Stéphane Courtois e outros anticomunistas profissionais – pode apagar essa diferença.
O Goulag era uma forma de barbárie moderna na medida em que era burocraticamente administrado por um Estado totalitário e colocado ao serviço de projetos estalinistas faraónicos de “modernização” económica da União Soviética. Mas ele caracteriza-se também por traços mais “primitivos”: corrupção, ineficácia, arbitrariedade, “irracionalidade”. Ele situa-se por essa razão num degrau de modernidade inferior ao sistema concentracionário do Terceiro Reich.
Enfim, a guerra americana no Vietname, atroz pelo número de vítimas civis exterminadas pelos bombardeiros, o napalm ou as execuções coletivas, constitui, em vários aspectos, uma intervenção extremamente moderna: fundada sobre uma planificação “racional” – com a utilização de computadores, e de um exército de especialistas – ela mobiliza um armamento muito sofisticado, na ponta do progresso técnico dos anos 60 e 70: B-52, napalm, herbicidas, bombas de fragmentação etc.
Essa guerra não foi um conflito colonial como os outros: bastava lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lançados sobre o Vietname foi superior àquela utilizada por todos os beligerantes durante a Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o massacre não era um objectivo em si, mas um meio político; e se a cifra de mortos é bem superior àquela das duas cidades japonesas, não se encontra no Vietname aquela perfeição da modernidade técnica e impessoal, aquela abstração científica da morte que caracteriza a morte atómica”.
A natureza contraditória do “progresso” e da “civilização” moderna encontra-se no coração das reflexões da Escola de Frankfurt. Em Dialética do esclarecimento (1944), Adorno e Horkheimer constatam a tendência da racionalidade instrumental de se transformar em loucura assassina: a “luminosidade gelada” da razão calculista “carrega a semente da barbárie”. Numa nota redigida em 1945 para Minima Moralia, Adorno utiliza a expressão “progresso regressivo” tentando dar conta da natureza paradoxal da civilização moderna.
Entretanto, essas expressões ainda são tributárias, apesar de tudo, da filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima não são em nada uma “regressão à barbárie” – ou mesmo uma “regressão”: não há nada no passado que seja comparável à produção industrial, científica, anónima e racionalmente administrada da morte na nossa época. Basta comparar Auschwitz e Hiroshima com as práticas guerreiras das tribos bárbaras do século IV para darmos conta que eles não têm nada em comum: a diferença não é somente na escala, mas na natureza. É possível comparar as práticas mais “ferozes” dos “selvagens” – morte ritual do prisioneiro de guerra, canibalismo, redução das cabeças etc. – com uma câmara de gás ou uma bomba atómica? São fenómenos inteiramente novos, que não seriam possíveis a não ser no século XX.
As atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeiçoadas e burocraticamente organizadas, pertencem unicamente à nossa civilização industrial avançada. Auschwitz e Hiroshima não são mais “regressões”: são crimes irremediavelmente e exclusivamente modernos.
Existe entretanto um domínio específico da “barbárie civilizada” em que se pode efectivamente falar de regressão: a tortura. Como destaca Eric Hobsbawm no seu admirável ensaio de 1994, “Barbárie: um guia para o usuário”: “A partir de 1782 a tortura foi formalmente eliminada do procedimento judiciário dos países civilizados. Em teoria, ela não era mais tolerada nos aparelhos coercitivos do Estado. O preconceito contra essa prática era tão forte que ela não pôde retornar após a derrota da Revolução Francesa que a havia seguramente abolido (…) Pode-se suspeitar que nos redutos da barbárie tradicional, que resistem ao progresso moral – por exemplo as prisões militares ou outras instituições análogas – ela de facto não desapareceu…” Ora, no século XX, sob o fascismo e o estalinismo, nas guerras coloniais – Argélia, Irlanda etc. – e nas ditaduras latino-americanas, a tortura é de novo empregada em grande escala.
Os métodos são diferentes – a eletricidade substitui o fogo e os torniquetes – mas a tortura de prisioneiros políticos tornou-se, no curso do século XX, uma prática rotineira – mesmo se não-oficial – de regimes totalitários, ditatoriais, e mesmo, em certos casos (as guerras coloniais), “democráticos”. Nesse caso, o termo “regressão” é pertinente, na medida em que a tortura era praticada em inúmeras sociedades pré-modernas, e também na Europa, da Idade Média até o século XVIII. Um uso bárbaro que o processo civilizador parecia ter suprimido no curso do século XIX voltou no século XX, sob uma forma mais “moderna” – do ponto de vista das técnicas – mas não menos desumana.
Levar em conta a barbárie moderna do século XX exige o abandono da ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício – nem tampouco o inverso. Simplesmente, a barbárie é uma das manifestações possíveis da civilização industrial/capitalista moderna – ou da sua cópia “socialista” burocrática.
Não se trata também de reduzir a história do século XX aos seus momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança, as sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais, os combates revolucionários: México, 1914; Petrogrado, 1917; Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956; Havana, 1961; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas, 1994; foram alguns dos momentos fortes – mesmo se efémeros – dessa dimensão emancipadora do século. Eles constituem pontos de apoio preciosos à luta das gerações futuras por uma sociedade humana e solidária.