Depois da queda dos muros das certezas fechadas, a filosofia militante de Bensaïd foi um momento importante de passagem de testemunho do pensamento revolucionário e da sua revitalização, de encontro com autores considerados menores e de reconstrução do marxismo sobre bases não dogmáticas. Artigo de Carlos Carujo
1- A filosofia militante
A expressão “filosofia militante” parece designar correctamente o pensamento de Daniel Bensaïd. Construir uma filosofia militante significa desafiar os poderes/saberes da Filosofia académica ao mesmo tempo que significa não se eximir de dialogar com as suas produções. Significa sobretudo, muito para além das fronteiras das Universidades, praticar um pensamento/acção intempestivo num sentido próximo daquele que Nietzsche utiliza: uma filosofia que procura “agir (…) contra o tempo e portanto no tempo e, esperemos, em nome de um tempo por vir”. No mesmo sentido, Bensaïd escreverá que a resistência é “fundamentalmente intempestiva, não pensa nem reage com o seu tempo, em harmonia com os tempos que correm, em paz com a época, mas sim em revês e a contratempo. Ser intempestivo é tomar a época ao contrário, pentear a época a contra-pelo.”
A filosofia militante é, assim, a arte estratégica de um pensamento que não se refugia no comodismo do escolástico nem na fuga absoluta às hegemonias e contra-hegemonias realmente existentes, que vive dentro do tempo organizado pelo capital para melhor estar contra ele, no contratempo da resistência, que se afirma em nome do tempo por vir da revolução. Na forma como no conteúdo, a filosofia militante respira no interior das contradições em vez de simplesmente as recusar.
Parte não menor do talento filosófico de Bensaïd foi impor, numa paisagem filosófica saturada de estrelas individualistas, quer o princípio militante da modéstia do pensamento em comum quer
a impureza da política revolucionária enquanto material filosófico que não pôde simplesmente ser descartado. A filosofia militante apresenta-se, assim, como escandalosa no sentido em que não só toma partido em tempo de neutralidades mornas ou de celebrações efusivas do sistema político-económico mas também em que se compromete, mesmo partidariamentee, sabendo não se tornar filosofia partidária, pensa o partido como mediação necessária numa rede complexa.
A novidade escandalosa do pensamento de Bensaïd reside assim, não só mas também, numa filosofia da militância que é uma filosofia da temporalidade estratégica, objectos que ou são insólitos na filosofia ou só aí poderiam entrar depois de uma operação de higienização abstracta.
Do ponto de vista da filosofia habitual, abriram-se caminhos e desfazem-se limites auto-impostos: mesmo em muitas das filosofias comunistas a questão estratégica estava ausente por ser do campo da política e por estas se considerarem uma espécie de frente paralela de batalha de ideias que não se cruza directamente com a militância política nem a deveria pensar. Do ponto de vista da militância resistente, uma filosofia assim contribui para aprofundar questões determinantes como as razões que existem hoje para ser revolucionário ou as formas mais eficazes de o ser. Em tempos em que a Filosofia serviu tanta racionalização para a não militância e para o afastamento teórico que olha de cima a política, se Bensaïd só nos tivesse trazido esse olhar já não teria sido pouco.
Depois da queda dos muros das certezas fechadas, a filosofia militante de Bensaïd foi um momento importante de passagem de testemunho do pensamento revolucionário e da sua revitalização, de encontro com autores considerados menores e de reconstrução do marxismo sobre bases não dogmáticas. Um momento de oposição aos ventos dominantes fossem os do marxismo frio das estruturas sem sujeito ou os da normalização despolitizadora do pós-Maio de 68. Um momento de afirmação de uma possibilidade diferente de pensar em profundidade a política revolucionária que não a da politização a-militante ou a do neo-comunismo teórico.
2- O tempo da revolução impossível
O século XX assistiu a uma mudança radical de pressupostos no pensamento sobre a revolução: do optimismo da revolução automática ao pessimismo da revolução impossivel. Os problemas deste tipo de optimismo revolucionário tinham sido já denunciados, por exemplo, por Gramsci que via nele uma forma de fatalismo que complicava a militância e tinha influência negativa nas relações de forças reais: ironicamente, se a revolução está determinada economicamente, podemos até ficar passivamente à espera que ela aconteça. Apesar disso, Gramsci considerava que o cienticismo e o economicismo, com a sua carga de inevitabilidade, tinham tido o seu tempo, funcionando, nos momentos iniciais do desenvolvimento da filosofia da praxis, como uma forma de armar de credibilidade e certeza os subalternos.
Os problemas do optimismo revolucionário de fuga para a frente que procura, situação política após situação política a razão prática do optimismo, foram também realçados por Bensaïd. Para este, bem mais do que procurar ler nas entranhas de cada situação política a certeza da revolução, é preciso olhar para a chamada crise do marxismo como uma oportunidade para conhecer outros marxismos e mesmo um outro Marx, com uma outra filosofia do devir que não a da revolução trazida inexoravelmente pelo progresso simples e ilimitado, sob influência de Benjamin; em que o proletariado não é uma substância pré-determinada ou um sujeito do destino histórico, como um objecto da sociologia positivista ou uma materialização directa do Espírito Absoluto hegeliano. Um marxismo não transcendente, ou, como Bensaïd o designava, profano, que precisa encontra noutro lugar que não num optimismo superficial a razão da sua militância revolucionária.
Derrotada a inevitabilidade dogmática da revolução, pelas macro-derrotas dos movimentos dos trabalhadores ou pelos micro-acontecimentos da vida de cada um, muitos passaram desse optimismo absolutista para o pessimismo absoluto que ainda hoje faz sentir os seus efeitos no consolidar da ideia da impossibilidade da revolução. Bensaïd faz um importante esboço dessa “genealogia do desespero” revolucionário no livro póstumo (Le Spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise – Marx, Marcuse, Debord, Lefebvre, Baudrillard, éd. Lignes, Paris 2011) analisando as bases de correntes anti-capitalistas influentes em várias geografias e tempos militantes, nos movimentos alterglobalização como nos movimentos dos indignados, com as quais o marxismo se vai cruzando.
O pensamento de Foucault e Deleuze deu lugar a uma constelação de teorias da micro-resistência que negam a possibilidade da revolução sendo muitas delas vulgarizações da teoria do poder de Foucault, da análise do desejo e do devir-revolucionário de Deleuze. A revolução seria impossível porque o poder estaria em todo o lado, mesmo dentro da resistência ao poder. A revolução seria impossível porque a lógica do desejo capitalista seria tão profunda que desejariamos, sob modalidades produzidas pelo capitalismo, a nossa própria submissão.
Debord e Marcuse, por sua vez, apresentam como fechado o ciclo infernal da exploração na sociedade unidimensional ou na sociedade do espectáculo, a capacidade de recuperação do capitalismo seria totalitária social como individualmente. De tal forma que, mesmo quando se procura nas margens um sujeito revolucionário, pressente-se a sua incapacidade de transformação.
O problema filosófico da alienação e do fetichismo, pano de fundo deste livro, apresenta-se como determinante para pensar a questão da revolução e mesmo para definir formas e prioridades da intervenção política revolucionária. Fosse esta uma “servidão voluntária”, como seguindo a inspiração de La Boétie alguns a insistem em pensar, e poder-se-ia simplesmente ou culpar a vítima pela sua incapacidade de querer outra coisa ou propor uma mudança de consciência. Só que, sublinha Bensaïd, o fetichismo tem uma base material, não basta simplesmente “escorraçar o tirano da sua cabeça” e por isso a luta de classes continua necessária.
Desta forma, a política do oprimido não pode ser tão simples como o exílio, o êxodo, a fuga propostos por Negri (inspirando-se ainda numa leitura do conceito de “linhas de fuga” de Deleuze) nem como a mini-revolta do “mudar o mundo sem tomar o poder” proposta por Holloway, no fundo uma outra fuga ao enfrentamento directo com a centralidade dos poderes capitalistas e dos estados.
Revolucionário, Daniel Bensaïd não só seguiu a genealogia destas teorias da impossibilidade ou da indesejabilidade da revolução como foi também um interlocutor privilegiado delas, levando-as a sério enquanto teorias da resistência ao capitalismo, avaliando a consistência e pertinência prática das suas novidades teóricas, como a categoria de “império” ou o sujeito colectivo “multidão”, de inspiração spinozista.
Ao longo de inúmeros textos, irá criticar ideias como a tese da “isomorfia do capitalismo e da resistência” (mais uma vez tirada de Deleuze): se noutros tempos a um Estado centralizado se opunha a centralização do partido, agora, face a um capitalismo rizomático, a resistência deveria ser fluída e em rede, como se as formas da resistência e do poder, dos subalternos e dos exploradores se tivessem de complementar numa dança, como se a alternativa fosse entre o esmigalhamento da resistência ou a sua centralização opressora no partido vanguarda omnisciente.
Ou como a “ilusão social” que floresceu na fase “dos slogans bonitos” dos Foruns Sociais Mundiais que, partindo da separação entre social e político, postulava que os movimentos sociais seriam capazes, por si só, de construir esse outro mundo que era possível. Uma ideia intimamente ligada à crítica da “forma partido”. O partido, numa análise descontextualizada dos desastres políticos decorrentes das derrotas das revoluções do século passado, teria sido a raíz dos males da política, cedendo-se assim a uma critica moralista que sobrevoa de forma demasiado ligeira a história e que não aprofunda suficientemente as pesadas tendências para a burocratização derivada da divisão social de trabalho.
3- A revolução enquanto acontecimento para além do eclipse estratégico
Permanecendo com um horizonte revolucionário mas tendo feito a revolução escapar às malhas seguras do determinismo histórico e do cienticismo, tendo procurado um marxismo quente para lá da quietude das estruturas, Bensaïd pensa a revolução como “acontecimento”.
Utiliza assim o mesmo conceito que Alain Badiou (ainda por herança deleuziana). Badiou, ao contrário dos teóricos da impossibilidade da revolução, celebra-a na sua singularidade imprevisível. Contudo, no seu pensamento, a possibilidade do acontecimento revolucionário está em correlação directa com a anulação da sua inscrição histórica e com a impossibilidade da política.
A forma da fuga em Badiou será assim o não enfrentamento dos problemas concretos que decorrem da tomada de posição revolucionária. Daí que o acontecimento em Badiou seja da ordem do milagre, denuncia Bensaïd: “a recusa de operar na contradição e na tensão equívoca (…) desemboca com efeito num puro voluntarismo, que ora é a forma efectivamente esquerdista da política, ora a do evitamento filosófico da política. Nos dois casos, a combinação do elitismo teórico e do moralismo prático podem significar uma retirada altiva do espaço público, laminado entre a verdade événementielle do filósofo e a resistência subalterna das massas à miséria do mundo.”
Para além disto, na amálgama da sua rede conceptual, a salvação da possibilidade da revolução vem também a par com uma defesa da verdade contra o sofismo pós-moderno. O seu peculiar comunismo platónico concebe, sem sair dos limites seguros da pura teoria, uma verdade que seria prática e não teórica, que seria por si só axiomática e fundadora, que seria inteiramente subjectiva, que eclodiria no acontecimento.
Assim, a magia da verdade e da revolução acontecem juntas só que a negação da história em nome da instaneidade fá-la aparentar-se àquilo de que queria ser o contrário: “a política das situações singulares, historicamente indeterminadas, aparenta-se então, por uma nova astúcia irónica da razão, ao esmigalhamento pós-moderno que pretende combater.”
Para além da revolução impossível e da possibilidade mágica da revolução, Bensaïd inscreve o acontecimento-revolução na história e na conjuntura social. Em vez de pairar, o trabalho da filosofia militante, como aliás o de toda militância, é um trabalho das profundidades, como a toupeira que se aventura “nas dobras e nas espessuras da história real, nas determinações históricas e sociais do acontecimento”.
Pensando o acontecimento para além do eclipse da estratégia, esse eclipse que os teóricos da impossibilidade da revolução promoveram, em que Badiou também cai e que influenciou mesmo as forças militantes revolucionárias, ganhamos acesso a uma temporalidade complexa. A temporalidade do acontecimento com memória, dos contratempos que desafiam a linearidade, dos desencontros entre ciclos de mobilização e ciclos económicos, da crise, do tempo demasiado longo do sistema capitalista e do tempo infinitamente pequeno do kairos, esse intangível momento propício da urgente acção excepcional que se combina portanto com o tempo da não menos urgente “revolução em permanência”.
Para costurar acontecimento, determinações conjunturais e estratégia, Bensaïd apela a Marx enquanto “pensador do possível”, um Marx não determinista que estabelece uma dialéctica da necessidade, da contigência e da possibilidade na qual “acaso e necessidade não se excluem”. Sendo assim, “a contingência determinada do acontecimento não é arbitrária nem caprichosa; apenas deriva de uma causalidade não formal (…). A necessidade desenha o horizonte da luta. A sua contingência conjura os decretos do destino.”
E se para costurar conceptualmente as temporalidades variadas é necessária a dialéctica, para operar praticamente uma mediação entre tempo longo, médio, curto e instantâneo, é necessário o partido político: “o que introduz Lenine com a problemática do partido (…) é a articulação dos movimentos de consciência a uma hipótese estratégica – uma hipótese, não um modo de emprego – que permite por seu lado ligar o momento do acontecimento com uma inscrição na duração. O partido, no sentido estratégico, é o operador ou a mediação entre estas duas temporalidades, do acontecimento e da história, da necessidade e da contingência.”
A revolução é possível porque “as normas da dominação podem ser quebradas por uma crise e por um acontecimento que não resultem nem de uma necessidade de ordem social, nem da predestinação de um sujeito histórico, nem de um milagre teológico, mas do alinhamento de batalha de práticas políticas despoletando o movimento que tende a abolir a ordem estabelecida.” A razão estratégica resgata assim o acontecimento do vazio. E a política do acontecimento mostra-se bem mais revolucionária do que a ontologia do milagre.
4- A aposta militante: uma subjectivação profana do revolucionário
A crise do horizonte revolucionário conduziu ainda a outra oportunidade. Tempos houve em que se pensava como óbvio o que um revolucionário era: agente lúcido da efectivação da história e membro devoto do partido destinado a instilar consciência na classe eleita. A derrocada de tanta fé no futuro colocou em crise muitos dos que se afirmaram revolucionários. Com isso também a própria cristalização subjectiva do que é ser/fazer-se/ver-se revolucionário.
Para responder a esta crise, parte da esquerda anti-capitalista lançou-se avidamente aos divãs da psicanálise, preferencialmente com consulta marcada com Lacan ou muitas vezes auto-psicanalisando-se de forma selvagem. Seja cruzando-se com a psicanálise, seja para além da psicanálise, como o fez a filosofia da militância de Bensaïd, questionar o que faz o conformismo social, o que produz a alienação, que efeitos tem o fetichismo, como se espalha e até onde o desejo capitalista, é, afinal, tão preciso como questionar o que é ser revolucionário. E, descartada a negatividade reactiva, as zangas com o mundo e com os papás, é preciso encontrar a positividade na figura do revolucionário, conhecer e mobilizar as razões profundas do seu compromisso.
O militante é um personagem excepcional e minoritário que (se) vive contra a corrente de um mundo “presa da desolação inconsolável de uma religiosidade sem fé, de uma espiritualidade comercializada, de um individualismo sem individualidade, da standardização das diferenças e da formatação das opiniões (…)”, um mundo povoado de sujeitos que vivem um “eclipse de futuro”, que já não acreditam no futuro.
Que razões justificam este esforço de remar contra a maré se não se opõe o advento de um futuro radioso ao eclipse do futuro? O militante encontrará várias ordens de razões para o seu compromisso. Milita-se por prazer, porque a militância não tem de ser a acção sofrida que carrega aos ombros todo o peso do mundo. Por exemplo, pelo prazer de estar com os outros, porque se é verdade que “militar não é um prazer solitário, mas sim uma acção colectiva” também o é que a acção colectiva é fonte de prazer. Mas, ao mesmo tempo, está-se com os outros quer por uma afinidade feita de “fidelidades moleculares, essas mínimas relações de memória e de acção” quer por um sentimento de dever, uma “lealdade para com os desconhecidos” (uma referência de Bensaïd às palavras do dissidente polaco Karol Modzelewski) imprescindíveis que constituem o nosso campo.
E milita-se por dever ainda noutro sentido já que há uma força vital impele, a partir da injustiça, à revolta porque “as resistências ou insubmissões são sempre movidas por uma preocupação de dignidade. Nascem da indignação, sempre renascente e sempre renovada, nunca cansada e nunca aborrecida (…) Sob pena de aceitar a humilhação sofrida, a ferida na dignidade deve traduzir-se em acção. (…) É necessário então ir além do grito, mais longe do que a indignação e transformar tudo isso numa revolta activa.” A indignação como ignição da acção militante e como princípio da dignidade, como se fosse uma prefiguração do discurso dos indignados nossos contemporâneos.
E, ainda que esta indignação seja mais ou menos espontânea, terá de saber fintar a má fé que insiste “que o mundo está bem como está e (…) não há nada que mudar”, a resignação que “dirá que (…) o mundo é lastimável, mas não é possível mudá-lo” e o o cinismo que “admitirá que, sem dúvida, haveria que mudar este mundo miserável” mas que “a humanidade não merece” o nosso esforço.
Como se passa do sentimento de indignação para um compromisso vital profundo e em permanência sem cair nas armadilhas do cinismo, da má fé ou da resignação? Este salto implica uma “aposta não garantida” e “um compromisso como desafio lógico sobre o incerto”. Utiliza-se como inspiração, na senda do que havia escrito Lucien Goldmann, a aposta de Pascal: tal como este substituiu o pesado lastro das provas da existência de Deus pela aposta existencial (neste caso uma aposta segura já que se considerava que apostando na existência de Deus nada se perdia se este não existisse e tudo se ganharia), é preciso considerar que “o activismo revolucionário tem inevitavelmente a forma de uma aposta, de uma aposta ponderada, claro, a mais lúcida possível, mas não há uma ciência exacta das revoluções. Para mudar o mundo (…) estamos condenados à bricolage, sem certeza de conseguir.” Aposta lúcida que é a melhor forma de escapar às ilusões fáceis que arriscam constantemente cair na desilusão ou serem vencidas pelo conformismo. Aposta difícil que é a melhor das probabilidades de escaparmos às catástrofes para as quais o capitalismo nos ameaça atirar.
A figura da militância revolucionária em Bensaïd contrasta com os discursos que acabaram por encontrar a cara da militância em figuras religiosas mais ou menos “profanizadas” mais ou menos profanadas (por exemplo, Badiou e Zizek em São Paulo ou Negri em São Francisco). Bensaïd, pensando o militante a partir da militância, insiste no carácter profano do revolucionário e prefere procurar inspiração junto da toupeira de Marx e do messiânico de Benjamin. A aposta militante implica um salto da indignação para a acção organizada e implica também uma permanência munida de passado e dirigida ao futuro. Aposta-se permanecer revolucionário em nome de um tempo por vir.
A toupeira é a figura da persistência molecular da memória:“falhadas ou atraiçoadas, as revoluções não se apagam facilmente da memória oprimida. Elas prolongam-se em dissidências latentes, em presenças espectrais, em ausências invasoras, na constituição molecular de um espaço público plebeu, com as suas redes e contra-senhas, os seus conciliábulos nocturnos e as suas explosões tonitruantes.” As ondas de choque das revoluções traídas não são totalmente abafadas, continuam um percurso subterrâneo no qual se encontram com as toupeiras que as sabem guardar. E essa memória é um material precioso para um revolucionário.
A toupeira é a figura da insistência necessária para a renovação constante da aposta (“a tenacidade e a constância (…) são as virtudes próprias da toupeira”), da teimosia necessária para a manter em condições difíceis: “resistir é, em primeiro lugar, e muito simplesmente não ceder, mesmo que a situação seja comprometedora, mesmo que a postura seja má, mesmo quando se está encurralado numa posição de debilidade ou de impotência talvez passageira. Resistir implica reconhecer a tua debilidade, admitir a relação desfavorável de forças, sem aceitá-la, (…) sem se resignar a ela.”
A toupeira é a figura da “paciência impaciente”, “uma lenta impaciência obstinada”, um “tempo de inevitável lentidão revolucionária”. A contratempo dos ritmos contemporâneos, a lentidão parece frustrar a própria vontade impaciente que propulsiona o impulso inicial da indignação. Mas paciência e impaciência dançam no seu desiquilíbrio criativo.
O “messianismo sem messias” (expressão tomada a Derrida) é o símbolo da ausência de transcendência na posição militante e a figura de uma relação aberta e de “espera activa” face ao futuro. Tornado profano a partir da tradição judaica, o pessimismo consciente e alerta da profecia messiânica opõe-se ao optimismo exagerado e sonorífero da razão utópica: “Este arco tenso da espera está mais perto da tradição profética do que da utopia quimérica. Porque a profecia hebraica, dependente de um talvez, faz soar o alarme da catástrofe que terá lugar se as coisas continuarem assim, mas que ainda se está a tempo de conjurar. Ela convida à acção.” Sem colocar uma cenoura imaginária à frente do trabalho de Sísifo militante, assegura a continuidade indispensável.
Sendo profecia não determinada, compreende uma“disponibilidade aberta ao inesperado”. E, por isso, e também por conter um sentido, a espera activa do princípio messiânico da militância revolucionária é ainda um antídoto, porventura amargo, para o tédio que ameaça permanentemente o quotidiano: “a espera messiânica (…) é o contrário exacto do tédio que é um sentimento de vacuidade temporal, de inutilidade estéril das repetições e do taciturno transcorrer do trabalho e dos dias.” Ao tempo monótono e liso do tédio opõe os solavancos de uma viagem apaixonante e não “desapaixonável” e a necessidade de mudar de carris.
À crise das tradicionais faculdades do revolucionário (razão utópica, fé militante e crença científica) responde Bensaïd com a espera activa messiânica, a aposta lúcida militante e a razão estratégica. E, sob o signo melancólico de Benjamin, e assim inventa novas possibilidades de ser revolucionário em tempos de incertas e de ameaças extremas.
5- Nota final: o horizonte revolucionário e os dias que correm
A filosofia estratégica de Bensaïd constitui um marco importante para pensar “a crise das categorias políticas da modernidade e a crise das estratégias de subversão”. A partir dele coloca-se claramente a questão da discordância dos tempos fundamental para o pensamento revolucionário: “o tempo da decisão política é o do meio termo, distinto dos ritmos económicos, como do tempo longo dos costumes, das mentalidades, da estética, do direito. Mas este tempo, o necessário à deliberação democrática, está cada vez mais dividido entre por um lado a instantaneidade da urgência – sanitária, humanitária – ou das decisões militares reflexas, e por outro lado a longa duração das escolhas energéticas e ecológicas.” Daí que seja crucial perguntar: “quais são hoje os ritmos e os espaços da mudança?
A filosofia militante de Bensaïd convida-nos assim a pensar de forma mais profunda quais são as razões de sempre para ser revolucionário inscritas em cada um de nós e quais são as novas possibilidades revolucionárias inscritas na realidade contemporânea.
Hoje, mais do nunca, é actual a pergunta: de que é hoje ainda nome a revolução?
A revolução é o nome de uma estratégia política global que se pensou permanente e de uma vontade que a quer em permanência. A revolução é o nome de um projecto presente de justiça, de dignidade e uma direcção para a indignação. A revolução é o nome do corte no tempo de um paradoxal momento fugaz, de um futuro desejado, de uma herança disputada. A revolução é um tempo agora sempre prematuro, de um horizonte reconstruído pela memória insubmissa. A revolução é o nome de uma aposta militante. Esta foi a aposta melancólica de Daniel Bensaïd. E cá estamos para dizer que não foi em vão. É também a nossa aposta.