Ernst Bloch: Música/Esperança/Revolução

Se preciso fosse, inventava-se uma comemoração. Mas não é preciso. Ernst Bloch nasceu a 8 Julho de 1885 – há pouco mais de 120 anos. Não é este o pretexto – preferimos aqui desconfiar do conforto comemorativo que consiste em despachar uma «figura» em colóquio e atribuir-lhe academicamente as medalhas que o morto já não pode receber (e Bloch não as desejava nem enquanto vivo). Não lhe resumamos a obra, que nem o saberíamos fazer. Limitemo-nos a lançar umas dicas para quem achar que vale a pena conhecer um pensamento aberto, heterodoxo e crítico, contributo ainda vivo (como muitos outros leitores de Marx não-estalinistas do século XX, e muitas experiências práticas de luta) e que pode ser útil para pensar e agir na transformação do presente, em tempos de muitos desânimos, e talvez de muitos perigos, mas também de grandes entusiasmos com o que pode emergir. Artigo de Pedro Rodrigues.


Música

Música, lá em cima no título, não é para adocicar o pensamento difícil, tortuoso, enigmático e contraditório de Ernst Bloch, marcado decisivamente pelos textos de Marx, pelo romantismo revolucionário, pelos movimentos revolucionários e artísticos da primeira metade do século XX e muito influenciado ainda pelo messianismo judaico e pelo cristianismo. Mas sempre longe dos dogmas, Bloch preferia as heresias, as heterodoxias, as teologias da libertação.

A religião, a arte, a política, a cultura, a história e a filosofia cruzam-se no seu escrito mais famoso, O Princípio Esperança, completado no exílio forçado nos EUA em 1938. Longas partes desta obra desmesurada são dedicadas à música. Porque a música é, para Bloch, uma das figuras da sua «utopia concreta», a arte que, para ele, mais promete: não apenas por ser uma arte em que é fundamental a organização dos tempos, que põe em relação a memória do que passou com aquilo que não se sabe ainda, com o que virá ao virar da nota, com o imprevisto. Mas porque a música conseguiria ser ao mesmo tempo um lamento e uma esperança, um abrigo e um protesto, a certeza clara e dinâmica do movimento e uma intuição obscura do que virá.

Na música encontra por isso Bloch um campo para o desenvolvimento das suas ideias fundamentais, e não apenas uma metáfora: música é, para ele, a arte que obscuramente contém os anseios de um mundo melhor e de uma comunidade outra, enigmaticamente como num sonho, como palavras-chave ainda por desvendar. Interessa-lhe particularmente a ideia do «sonhar acordado», um «sonhar-para-a-frente», uma inquietação desperta, uma intuição viva e transformadora. A sua ideia de uma «consciência antecipante» tem a ver com uma valorização das capacidades do ser humano em antever alguma coisa do seu futuro. Não se trata de prever o futuro em bolas de cristal. «A única maneira de prever o futuro é inventá-lo», diz o punk «bué intelectual» dos Focolitus, corrigindo bem o «No future» dos Sex Pistols….

Esperança

Bloch distinguia duas correntes do marxismo, ou duas vias para chegar a Marx. A corrente quente (herança utópica que liga imaginação e conquista do poder, crítica ideológica e crítica da cultura, dos valores, das mistificações, da alienação) e a corrente fria («detectiva», científica, económico-política). Devolvendo ao marxismo «científico» a força ardente da ideia de um futuro libertado, ele pretendia reequilibrar as duas correntes, destacando a importância do elemento subjectivo nos combates colectivos e a defesa da força expressiva de cada um e do potencial antecipante, isto é, utópico, do ser humano. Essa «consciência antecipante» vive também na liberdade individual e na capacidade de sonhar, mas é feita sobretudo de experimentação e de imaginação colectivas, tornando-se possibilidade colectiva futura no processo de luta. Desta forma rejeitava Bloch qualquer visão determinista que considerasse «inevitável» o advento do socialismo. As necessárias condições objectivas de pouco serviriam se não houvesse a capacidade de organizar a esperança e transformar, ao mesmo tempo, o trabalho, a vida e a consciência de cada um. Para Bloch a utopia não é uma imagem acabada dos «amanhãs que cantam». É um horizonte de esperança que actua hoje sobre a humanidade. Quem pode cantar não são os amanhãs – somos nós, hoje, entrevendo a possibilidade de um outro mundo. Porque este está estafado pela exploração do trabalho e pela mercadorização da vida, e cimentado com a mentira.
Não interessa, portanto, a Ernst Bloch a utopia ideal realizada, nem as imagens do paraíso, mas uma outra utopia, activa, concreta e profana, que lança agora materiais para o futuro. Não determina totalmente esse futuro – antecipa-o como anseio e forja-o a partir de uma impaciência que se faz de luta concreta, uma esperança desesperada, uma esperança que é exactamente o contrário de ficar à espera.

Por isso apelava Ernst Bloch a uma «organização da esperança», sabendo, como Gramsci, que é na situação concreta, na aprendizagem que a prática revolucionária implica que se pode redescobrir a força dos textos de Marx. A sua defesa da revolução russa não o impediu de criticar a burocratização, o centralismo não democrático e sobretudo o percurso nacionalista e autoritário do estalinismo. Bloch aproxima-se aqui de Rosa Luxemburgo que, longe de encaixar no rótulo de “espontaneísta”, foi uma acérrima defensora da necessidade de organizar o campo revolucionário e da existência de uma direcção democrática para o movimento operário. Mas foi também uma das mais inteligentes críticas do centralismo não democrático, do perigo da arrogância do partido que não saiba aprender com as massas em movimento, com as suas experiências emancipatórias e a sua própria capacidade de luta (e os seus erros!). «Não há socialismo sem democracia e não há democracia sem socialismo» – eram as palavras de Rosa Luxemburgo que Bloch subscrevia. Outra democracia socialista a descobrir, não o estalinismo nem o «socialismo na gaveta» de tantos pê ésses. Nada disso. Uma outra coisa.

«E essa coisa é que é linda» (José Mário Branco). Não bastará, contudo, a inquietação. Essa outra coisa implica a reinvenção na prática da ideia possível de uma comunidade libertada, rompendo fronteiras e alargando as margens do possível para tirar o tapete aos poderes instalados. Desinstalar um poder exige que sejamos capazes de antever um pouco do futuro, «preparar-lhe bons materiais», dizia Blanqui, sugerir possibilidades, experimentar respostas, não desistir das lutas, fintar colectivamente o destino, construir a «utopia concreta» de que fala Ernst Bloch. Descobrir as alavancas, como no judo: desequilibrar o adversário em movimento, deslocar as suas forças, aproveitando o seu peso para o atirar ao tapete.

Esse horizonte utópico revolucionário era, para Bloch, o antídoto da alienação e da resignação. Um anseio indispensável para não desistir. Mas pode ser também o antídoto para as (pobres) utopias chauvinistas do «melhor para a Nação», que vão soçobrando em cada negociação europeia e em cada «crise nacional». No fim de contas, são esses os pregadores piedosos do impossível: julgam que este capitalismo pode ser pacífico – ou ético – sem procurar travar, pela luta política, a lógica da acumulação, da concorrência, da guerra, da mercantilização, da exploração, do terror. E a sensatez passa afinal pela exigência revolucionária da luta internacionalista, contra essas utopias que não passam de ilusões. «Utopia» tornou-se, é verdade, uma palavra muitas vezes mentirosa, porque se encaixou de várias formas no mundo e no pensamento dominante. Transferiu-se  para a publicidade. Converteu-se simplesmente na outra face da ilusão (paraísos de progresso e «oásis» liberais género-Cavaco) e da inacção (utopias contemplativas, cinismo). Essas não compramos.

Mas utopia podia ser outra coisa, sugeria Bloch: um pensamento do que não tem lugar hoje mas que pode ser entrevisto e redescoberto em cada movimento concreto. Para lá do que existe hoje (as mentiras do presente) há muitas verdades a descobrir. Só há um planeta chamado Terra, mas não vivemos no único mundo possível. Bloch propõe assim uma dialéctica entre o real e o possível, porque tudo o que existe não pode ser a verdade toda. Há verdades que estão nos possíveis, para lá do que existe hoje. Não vivemos no melhor dos mundos. Uma outra verdade, em processo, espreita. Um caminho longo: a verdade da emancipação (Marx). Essa «utopia concreta», que pode na música anunciar-se em lamento resistente (e não desistente), é desejo em luta, anseio de um «longe», prospecção e experimentação de possíveis, para alargar os horizontes das vidas.

Revolução

O porvir será então realmente o que está por-vir (o noch nicht de Bloch, o que ainda não está aí), mas que já está em potência nos combates do presente e esteve em importantes lutas no passado, e pode estar contido na arte de ontem e de hoje como promessa. Um nascimento anunciado, uma nova Estação: Le temps des cerises. Se na arte pode estar contida essa promessa, isso indica também que há, agora, diferentes tempos que não são coincidentes. Há futuros já hoje. Há, nas palavras de Daniel Bensaïd, uma «discordância dos tempos». Isto é, não vivemos num tempo linear, mas num tempo feito de tempos discordantes e sobrepostos, incoincidentes, de ciclos e de convulsões, de crises e de saltos, mas também de novas visões do passado e de antecipações criativas do futuro. «Ou adivinhar na ondulação da alta e perdida estrada/ a linha da música, a miragem» (Manuel Gusmão).

Consciente dessa «discordância dos tempos», Bloch pensa que o potencial utópico da música ainda não pode ser apreendido totalmente. Daí uma afirmação como esta, quase provocatória: «Ninguém ouviu ainda Mozart, Beethoven ou Bach como eles verdadeiramente apelam, apontam e ensinam; isto só acontecerá muito mais tarde (…)».

Essa música, carregada de esperança, está por exemplo num trompete do Fidelio, a ópera de Beethoven que canta a liberdade. Esse trompete anuncia a derrota da tirania. Mas já antes cantava Leonore: «Vem, esperança, não deixes que se apague a estrela dos que estão cansados! Vem, ilumina o meu objectivo, por muito distante que esteja». Mas a «arte utópica da música», como lhe chama Bloch, não está apenas nas grandes obras dos compositores «eruditos». Pode estar numa simples canção. Quando Marx reflectia acerca de uma sublevação operária em Inglaterra, era curiosamente uma canção que ele ia buscar para se referir ao seu potencial emancipador: «Que nos lembremos antes de tudo da Canção dos tecelões, esse grito de guerra, no qual não se faz sequer referência ao lar, à fábrica, ao distrito, mas no qual o proletariado clama imediatamente, de modo brutal, impressionante, violento e incisivo, a sua oposição à sociedade.»

A dinâmica da música é a figura desse pressentimento emancipador. E esse pressentimento é um «saber dos fins». Porque é necessário recolocar a questão dos fins – da revolução, da transformação radical do mundo – sem cair no abismo da política sem ideias, sem saídas, sem aberturas – sem história. Mas a arte não se substitui à acção política. É nos combates do dia, no presente, neste tempo de agora, que se faz a acção emancipadora que se pode alimentar da força daquela esperança que não fica à espera. Poderemos escutar talvez a «utopia concreta» numa canção do José Afonso, um apelo tão frio e tão quente à mobilização da esperança: «No inverno aperto o cinto/ Enquanto o vento assobia/ No inverno aperto o cinto/ – Qualquer dia, qualquer dia!…»

 

 

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(caixa) 

Bloch é de facto um herético, ateu a descobrir as revoltas da religião e marxista não dogmático a afrontar a burocracia estalinista. Antes disso, durante a guerra de 14-18, aproxima-se dos movimentos pacifistas e foge à tropa, procurando o exílio na Suíça. Simpatizante dos spartakistas e de Rosa Luxemburgo volta a Berlim, mas segue-se um período de repressão violenta. Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo são assassinados. Bloch foge para Munique. Nos anos 20 convive em Berlim com a força do movimento revolucionário, com os movimentos artísticos de vanguarda e com gente como Brecht, Benjamin, Adorno, Eisler, Kracauer, e tem discussões violentas com Lukács, saindo em defesa das experiências da arte moderna.  Mais tarde, perseguido por ser comunista, de origem judaica e por afrontar o nazismo, teve de se exilar a partir de 1933 de novo na Suíça, Áustria, França, Checoslováquia e finalmente  nos Estados Unidos em 1938, quando os nazis chegavam a Praga. Depois da guerra instala-se na R.D.A, pensando poder contribuir para uma transformação democrática da Alemanha, mas depois de 1956 e de apoiar a insurreição húngara é proibido de ensinar, é rotulado de «revisionista» e reduzido ao silêncio. Depois da construção do muro de Berlim, instala-se na R.F.A até 1977, data da sua morte. Nos anos 60 é «repescado» pelos movimentos estudantis alemães, em particular por Rudi Dutschke, mas só mais recentemente tem sido resgatado das margens do esquecimento, (re)discutido e (re)traduzido. Mas teremos de o ler noutra língua, encomendar na internet, procurar numa rara biblioteca ou pedir emprestado… Em Portugal não foi publicado (nada de nada, que eu saiba): os ditames do mercado, a ignorância e a inércia encarregam-se de o impedir, suponho.

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