O CAPITALISMO, POR ERNEST MANDEL

Este artigo mostra a actualidade da análise do capitalismo de Ernest Mandel

“Se a economia não pode mais sobreviver senão sob a direcção consciente da sociedade, não deverá ela funcionar no interesse da colectividade, sob gestão democrática desta colectividade, em vez de funcionar às custas da colectividade sob a autoridade de alguns magnatas da finança e de tecnocratas?”, perguntava Ernest Mandel em 1981, neste artigo para a Enciclopédia Universalis que publicamos na Biblioteca Marxista.


 

O capitalismo é um modo de produção fundado na divisão da sociedade em duas classes essenciais: a dos proprietários dos meios de produção (terra, matérias-primas, máquinas e instrumentos de trabalho) – sejam eles indivíduos ou sociedades – que compram a força de trabalho para fazer funcionar as suas empresas; a dos proletários, que são obrigados a vender a sua força de trabalho, porque eles não têm acesso directo aos meios de produção ou de subsistência, nem o capital que lhes permita trabalhar por sua própria conta.

O capitalismo não existe em lugar nenhum em estado puro. Ao lado dessas duas classes fundamentais vivem outras classes sociais. Nos países capitalistas industrializados, encontra-se a classe dos proprietários individuais de meios de produção e troca, que não exploram ou quase, mão-de-obra: pequenos artesãos, pequenos camponeses, pequenos comerciantes. Nos países do Terceiro Mundo, encontramos muitas vezes ainda proprietários fundiários semi-feudais, cujos rendimentos não provém da compra da força de trabalho, mas de formas mais primitivas de apropriação do sobre-trabalho, como a corveia ou a renda em espécie. Trata-se aí, porém, de classes que representam resquícios das sociedades pré-capitalistas, e não classes típicas do próprio capitalismo.

O capitalismo não pode sobreviver e desenvolver-se senão quando estão reunidas as duas características fundamentais que acabámos de indicar: o monopólio de meios de produção em proveito de uma classe de proprietários privados; existência de uma classe separada dos meios de subsistência e de recursos que lhe permitam viver de outro modo que não pela venda da sua força de trabalho. O modo de produção capitalista reproduz constantemente as condições da sua própria existência.

A repartição do “valor acrescentado”, do rendimento nacional, faz surgir, por um lado, uma acumulação de capitais (entre as mãos das empresas) que permite transformar em propriedade privada o essencial dos meios de produção e de troca recém-criados. Esta mesma repartição do rendimento nacional condena, por outro lado, a massa dos assalariados a só ganhar o que eles consomem, mesmo quando o seu nível de vida e de consumo sobem progressivamente; ela não lhes permite se transformarem em capitalistas, isto é em indivíduos trabalhando por sua própria conta.

Duas séries estatísticas universais confirmam a justeza desta tese. Em todos os países capitalistas, a parte da população activa obrigada a vender a sua força de trabalho não pára de aumentar; a parte desta população activa que constituem os “independentes” e suas “ajudas familiares” não cessa de diminuir. A repartição da fortuna privada faz surgir uma enorme concentração: a metade ou mais da fortuna mobiliária é geralmente detida por 1, 2,3 % das famílias, ou ainda por uma fracção mais reduzida da população.

Quando essas condições de existência do modo de produção capitalista são inexistentes à partida, ou existem parcialmente, o capitalismo não pode desenvolver-se senão criando-as artificialmente, pela força. Assim, em numerosos países do Terceiro Mundo, a penetração capitalista foi travada pela existência de abundantes reservas de terras, que permitiram à massa das populações indígenas sobreviver entregando-se à agricultura nas terras sem proprietário. Para transformar essas populações em proletários, era preciso suprimir o acesso livre a essas terras, quer dizer transformar estas em propriedade privada. Durante o último quarto do século 19, esse processo generalizou-se na América do Norte e em vastas zonas de África.

O modo de produção capitalista é essencialmente uma forma de economia de mercado. Ele constitui o único exemplo histórico de uma economia de mercado generalizada. Todos os elementos da vida económica tornam-se mercadorias: não somente a terra (que não existia de forma nenhuma em regime feudal típico), os instrumentos de trabalho, as máquinas, o capital-dinheiro, mas também a própria força de trabalho. Nas origens do capitalismo, há precisamente esta generalização da produção e da circulação de mercadorias na sociedade. As concentrações do capitalismo, que o levarão a desaparecer, provêm todas, em última análise, das concentrações inerentes à própria produção mercantil.

1 – As origens.

Convém não confundir “capitalismo” e “capital”. O primeiro é um modo de produção nascido da penetração do segundo na esfera da produção. Mas antes de transtornar o modo de produção, o capital existia, no seio dos modos de produção anteriores, essencialmente em sociedades feudais e semi-feudais e no modo de produção asiático.

A produção para a troca.

A partir de uma certa etapa de desenvolvimento das forças produtivas, a troca – inicialmente ocasional e sem importância nas sociedades mais primitivas – se regulariza no seio de sociedades ainda fundadas sobre uma economia essencialmente natural. Assim aparece a produção para a troca (produção de mercadorias) ao lado da produção para satisfazer directamente as necessidades dos produtores ou da sua colectividade. A pequena produção mercantil (por exemplo o artesanato corporativo da alta Idade média) não foi criada pelo capital. Ele pode manter-se estável durante séculos e coabitar com uma agricultura de subsistência, com a qual ela estabeleceu relações de troca que não minam nem um nem outro.

Mas a troca regularizada, que se estende progressivamente, faz nascer o dinheiro e o comércio do dinheiro, sobretudo quando se trata de uma troca prorrogada no tempo e no espaço (comércio internacional). O capital aparece na sociedade capitalista sob a forma de capital-dinheiro, independentemente do modo de produção e independentemente das classes fundamentais dessa sociedade. Inicialmente intermediário, mas um intermediário que subjuga progressivamente todas as esferas da actividade económica.

Capital usurário e capital mercantil.

Os produtos de luxo escoados pelo comércio internacional supõem, para serem consumidos por uma economia essencialmente natural, um equivalente em dinheiro. O capital usurário apropria-se de uma parte da renda fundiária feudal e provoca a dívida geral da nobreza. Ele submete os próprios príncipes, reis, e imperadores, financiando as suas guerras e consumo de luxo. A economia monetária estende-se (nomeadamente com a aparição da renda fundiária em dinheiro), a usura apodera-se de todas as classes da sociedade, nomeadamente por intermédio dos empréstimos sob penhora. Numa economia essencialmente natural, o detentor do capital-dinheiro é primeiro um estrangeiro (Sírio, Judeu, Lombardo, banqueiro italiano na Idade média na Europa). Mas com a generalização da economia monetária, uma classe de proprietários autóctones de dinheiro aparece progressivamente, acabando por eliminar muitas vezes a dominação de detentores de capitais estrangeiros a partir do momento que é transposta uma etapa determinada de desenvolvimento económico.

O início do desenvolvimento do comércio internacional fez aparecer o capital mercantil ao lado do capital usurário. Esse capital financia inicialmente empresas arriscadas, mas que asseguram um lucro bastante elevado (expedições de pirataria, caravanas em direcção à Ásia e África). Pouco a pouco, ele organiza-se (as primeiras sociedades por acções, dupla contabilidade), normaliza-se (zona da Liga Hanseática) e institucionaliza-se (grémios, feiras). Cria os instrumentos típicos do crédito capitalista, que são os antepassados de todo o nosso sistema monetário contemporâneo (letras de câmbio, moeda escritural, papel-moeda, acções, títulos de dívida pública negociável).

O capital manufactureiro.

As grandes descobertas dos séculos 15 e 16 provocam uma verdadeira revolução comercial: o que ainda ontem era luxo, (açúcar, especiarias, ornamentos em metais preciosos, café) está agora ao alcance de largas camadas da população. O capital mercantil e os grandes bancos fundem-se e financiam tanto o comércio marítimo regular de grande distância como a exploração sistemática de riquezas coloniais (Companhia das Índias orientais). Da resposta do capital comercial às limitações impostas à produção no seio das cidades dominadas pelos ofícios de artesãos, bem como dos lucros nascidos do comércio colonial (pilhagem das colónias, tráfico de Negros, “comércio triangular”) nasce o capital manufactureiro, que é a primeira penetração do capital na produção propriamente dita. São os comerciantes-empreendedores que organizam, no campo ou nas cidades outrora pequenas, uma indústria têxtil ou metalúrgica no domicílio, depois, manufacturas nas quais os produtores, transformados em proletários, são reunidos e colocados sob o controlo permanente de vigilantes: trata-se de realizar uma divisão do trabalho mais avançada e de limitar os roubos e as imperfeições.

A revolução agrícola (ligada à substituição da rotação trienal por técnicas restauradoras da fertilidade dos solos, e à extensão da pastagem, nomeadamente de ovelhas para alimentar de lã a indústria têxtil em pleno desenvolvimento) aumenta consideravelmente o número de pessoas desenraizadas, sem recursos nem acesso aos meios de subsistência e de produção. A aparição desses desenraizados está ligada, aliás, a todos os fenómenos de decomposição da sociedade da Idade média: o declínio das corporações, dissolução dos séquitos feudais pelo empobrecimento da nobreza. Assim nasce o proletariado moderno, seguidamente fixado, muitas vezes pela força, nas manufacturas e primeiras fábricas.

A revolução industrial

A revolução industrial concretizou esse modo de transformação do modo de produção capitalista. Ao aumentar fortemente as despesas de instalação, ao encarecer os instrumentos de trabalho, ela finaliza a transformação da propriedade dos meios de produção em monopólio de uma classe social: a dos proprietários de capitais. Ao permitir obter lucros consideráveis pelo emprego de técnicas mais modernas – ao fazer da inovação tecnológica um motor de mudança constante da produção – a revolução industrial faz refluir a maior parte dos capitais do comércio para a produção. Ao baixar consideravelmente os custos de produção das mercadorias, ela rebenta com todas as particularidades (nacionais, climatéricas, tradicionais) das necessidades e dos produtos ao criar um mercado mundial, à conquista do qual o capital se lança com insaciáveis apetites de lucro. Ao estoirar com todas as antigas limitações da produção, ela cria as condições de uma concorrência que é um chicote para o capital: ele deve aumentar seus lucros a fim de acumular cada vez mais capitais.

O nascimento do modo de produção capitalista está portanto ligado à criação histórica das condições de existência acima indicadas. Ela está ligada à generalização da produção mercantil, à criação do mercado mundial, bem como à acumulação de experiências científicas e de progressos técnicos que tornaram possível a revolução industrial. Todos esses processos culminam na afirmação do poder político da burguesia capitalista.

A burguesia capitalista

O desenvolvimento do capital usurário, do capital mercantil e mesmo do capital bancário pôde realizar-se no seio de numerosas civilizações. Ele não foi inferior na Índia, na China, no império do Islão clássico, ao que foi na Europa ocidental do século 13 ao 15. A China tinha séculos de avanço sobre a Europa no domínio do desenvolvimento de uma série de técnicas produtivas. Mas a potência do poder de Estado central – função nessas sociedades das necessidades de irrigação da agricultura – impôs um processo descontínuo de acumulação de capital-dinheiro. As famílias burguesas mais ricas viam os seus tesouros regularmente confiscados. O capital é submetido, ele cala-se, espreita a ocasião de se retransformar em propriedade imobiliária. No decurso da Idade média europeia, produziram-se fenómenos comparáveis de descontinuidade. Mas, nessa época, o Estado era relativamente fraco, a cidade adquire a primazia progressiva sobre o campo e a jovem burguesia pode fazer uma longa aprendizagem de autonomia política nas comunas mais ou menos livres.

Quando a monarquia absoluta aparece, a burguesia é suficientemente forte que ela não pode mais ser dispersada. A Corte deve ao contrário efectuar um jogo de sábia basculação entre esta burguesia e a nobreza de forma a afirmar o poder real, já submetido ao capital pelas correntes de ouro da dívida pública. O ascenso da burguesia em relação ao poder político estabelece as condições de uma continuidade da acumulação do capital que, juntamente com progressos técnicos decisivos, (nomeadamente no domínio da artilharia) permite a penetração do capitalismo na Europa do século 16.

2 – O modo de produção capitalista.

A produção capitalista consiste na produção de mercadorias com vista ao lucro. A procura do lucro é imposta pela concorrência. Toda a empresa que não realize um lucro suficiente acumulará menos capital, terá um acesso difícil e mais caro ao crédito, será por consequência afastada na corrida à tecnologia mais moderna e perderá por esse facto mercados em proveito dos seus concorrentes.

Mais-valia e lucro.

Apesar de produção capitalista consistir na produção de mercadorias, é necessário distinguir entre a produção do lucro (ou, mais exactamente, da mais-valia) e a sua realização. A mais valia nasce no decurso do processo de produção; ela provém do facto da mão-de-obra assalariada, ao trabalhar sobre a matéria-prima com a ajuda de máquinas, preenche uma dupla função: conserva o valor do capital constante com o qual ela opera, ao incorporar parcelas deste valor em cada novo produto que fabrica; cria um valor novo, e este valor ultrapassa o do próprio salário do trabalhador. A mais-valia é a diferença entre o valor criado pela força de trabalho e o seu próprio valor.

Mas para que o capitalismo possa recuperar o capital investido (capital constante + capital variável, o capital variável representando o preço da força de trabalho) e realizar lucro, é necessário que as mercadorias sejam vendidas, e vendidas a um preço susceptível de aumentar o lucro do capital investido. Isso coloca dois problemas. Primeiro, o da venda propriamente dita, isto é da existência de uma procura socialmente solvável. Seguidamente, o preço de venda: este pode ser tal que a companhia vende com prejuízo, que ela recupere somente o capital, que ela faça lucro inferior, igual ou superior à média dos outros capitais. A empresa capitalista joga sobre vários teclados, a fim de se assegurar o máximo de proveito.

No plano da produção, ela vai procurar baixar ao máximo os custos de fabricação: ela procurará técnicas produtivas mais avançadas, tentará baixar os salários e reduzir a mão-de-obra empregada ao melhorar a organização do trabalho (racionalização). A empresa capitalista recorrerá ao crédito para que a maior parte do capital possa ser investido em máquinas: ela procurará um crédito de circulação, que cobra a quase totalidade do fundo de maneio, e de créditos a longo prazo no mercado de capitais para alargar a sua esfera de operações para além dos seus próprios meios, emissões de acções e de obrigações. Em geral, quanto mais o raio de operações se alarga, mais a produção aumenta, mais o capital fixo colocado em movimento cresce, e mais o custo unitário (custo da unidade produzida) baixa, e mais aumenta por esse facto a competitividade da empresa e a massa absoluta dos lucros que ela realiza.

No plano da venda, efectua-se uma divisão do trabalho entre o capital industrial e o capital comercial e bancário. Este último toma a seu cargo as despesas de distribuição e de venda das mercadorias, encurta a duração da sua circulação entre o momento onde elas são produzidas e o momento onde elas são vendidas, procura estimular a venda por intermédio de técnicas mais diversas, acrescendo assim o raio de acção do capital industrial, isto é massa de lucros que obtém. Em troca, esses capitais apropriam-se de uma parte da mais-valia social produzida nas fábricas capitalistas.

Assim efectua-se um movimento de nivelamento da taxa de lucro, pelo fluxo e refluxo constante de capitais, que abandonam os ramos onde a taxa de lucro cai abaixo da média social e afluem em direcção dos ramos onde é superior a esta média. Não se trata aí somente de uma tendência: a equalização absoluta das taxas de lucro nunca se realiza em regime capitalista. Há sempre ramos em expansão – cuja produção é ainda inferior à procura social solvável, que gozam permanentemente dum super lucro monopolístico, de uma “renda de monopólio” – e outras em declínio cuja produção é geralmente superior à procura social e cuja taxa de lucro é portanto permanentemente deprimida. Há também, no interior de um mesmo ramo, empresas gozando do monopólio da produtividade que realizam super lucros e empresas envelhecidas que não realizam o lucro médio. A tentativa das empresas em ultrapassar o lucro médio é o motor essencial dos investimentos e da actividade capitalista. Mas da multiplicação destas tentativas surge precisamente a tendência em direcção de uma equalização da taxa de lucro.

Capital e trabalho

O modo de produção capitalista não é somente dominado pela concorrência entre capitalistas, mas também pela concorrência entre operários e capitalistas. O “valor acrescentado” na produção industrial partilha-se entre o trabalho e o capital; é um dado fixo, no termo de cada processo de produção (ou de cada mês ou de cada ano): a parte de um não pode aumentar sem que a parte do outro diminua. O capitalismo, a fim de acumular capital, procura reduzir a parte dos trabalhadores no valor acrescentado, enquanto que estes, a fim de aumentar seu nível de vida, procuram espontaneamente acrescentar esta parte. Assim nasce a luta de classe elementar no seio deste modo de produção.

A oferta da mão-de-obra é em primeiro lugar muito mais abundante do que a procura: a industrialização, na sua fase inicial, suprime mais empregos do que oferece. O movimento demográfico, ligado ao início da revolução industrial, vai no mesmo sentido. Nesta época, o capital procura aumentar a sua parte do rendimento nacional ao baixar os salários reais e prolongando a semana de trabalho. Esta tendência prevaleceu no Ocidente do século 16 até meados do século 19; ela prevalece ainda em parte nos países do Terceiro mundo.

Seguidamente, a procura de mão-de-obra aumenta mais rapidamente, quando a industrialização se acelera, sobretudo nos países ocidentais que se tornaram as oficinas industriais do mundo. A oferta tende a reduzir-se decorrente da emigração em massa (70 milhões de Europeus partiram para os países de além-mar). Assim, o jogo da oferta e da procura parou a baixa absoluta dos salários reais. Estes começam a aumentar progressivamente. Os capitalistas procuram porém em manter constante a sua parte do “valor acrescentado” pelo crescimento da produtividade. Como esta implica a maior parte das vezes que as máquinas se substituem às pessoas, ela oferece ao capital a vantagem suplementar de reconstituir periodicamente o exército de reserva industrial e de manter os salários nos limites suportáveis pelo regime.

3. As contradições do capitalismo

A baixa da taxa de lucro

A produção capitalista é, lembremos, uma produção em busca do lucro; mas este provém da mais-valia. Só uma parte do capital produz a mais-valia: capital variável, que compra a força de trabalho, a única que cria valor. Ou, à medida que a mecanização cresce, que progride a tecnologia, a parte do capital total dispensado em salário diminui; a parte desse capital despendido em máquinas e instalações fixas aumenta (a composição orgânica do capital aumenta). Se a proporção dos salários no “valor acrescentado” fica na mesma, (isto é se a taxa da mais-valia é estável), há baixa da taxa de lucro.

Esta baixa é somente uma tendência. Pode-se verificar de duas maneiras. Em cada ciclo quinquenal, septenal ou decenal, que conduz de uma crise à outra, a taxa de lucro aumenta primeiro na retoma económica, nomeadamente porque o desemprego e a racionalização pesam ao mesmo tempo sobre os salários individuais, sobre a massa salarial (o emprego), sobre a disciplina e sobre a intensidade do trabalho. Essa taxa sobe com o boom nascido do aumento dos preços, depois começa a ser “corroída” com o pleno emprego, as horas suplementares, o aumento de salários; flutuação da mão-de-obra acentua-se; a disciplina e a intensidade do trabalho diminuem. A taxa de lucro afunda-se na véspera e no início da recessão.

Seguidamente – a longo prazo – a taxa média de lucro diminui quando há uma modificação muito importante na composição orgânica do capital. Em geral, é tanto mais elevada quanto menos industrializado for um país.

A verificação estatística desta tendência a longo termo, que é fácil até o pós Primeira grande guerra, choca com as dificuldades no decurso das últimas décadas. Os especialistas falam então de uma estabilidade ou mesmo de uma baixa do “coeficiente do capital” (despesa em capital necessária para produzir uma unidade suplementar do rendimento) que, sem ser idêntica à taxa de lucro, está manifestamente em relação com ele. Esta dificuldade provém essencialmente da impossibilidade de determinar o valor do próprio capital, que os hábitos correntes de amortização tendem a subavaliar de maneira considerável, sobretudo com a evasão fiscal.

Uma outra dificuldade de verificação estatística provém da inflação monetária constante. O crescimento colossal da produtividade do trabalho teria feito baixar os preços para cifras mais baixas se não houvesse a depreciação monetária. Mas como existem distorções consideráveis entre o índice dos preços de retalho dos produtos de grande consumo, o índice dos preços de grosso das matérias-primas e o índice dos preços das máquinas (aliás não comparáveis a longo prazo, porque profundamente modificados), esta depreciação monetária torna muito difícil a comparação das taxas de lucro a trinta ou quarenta anos de distância.

As crises

Os investimentos são o motor da expansão económica. Os capitalistas são levados a investir sob o impulso da concorrência. Mas num regime de propriedade privada dos meios de produção, os investimentos fazem-se essencialmente de maneira descontínua. Os centros de decisão são múltiplos; eles são essencialmente influenciados pelas previsões de lucros. Quando a oferta ultrapassa a procura, quando o mercado parece em rápida expansão, quando as vendas fazem-se a preços que deixam lucros consideráveis, as forças que favorecem a extensão dos investimentos prevalece sobre aquelas que tendem a travá-las. Basta que as decisões em investir se multipliquem em alguns sectores para que elas se generalizem rapidamente.

O contrário também é verdade: uma redução brusca dos investimentos em vários sectores importantes (porque há superprodução, stocks invendáveis ou capacidade de produção excedentária, ou ainda porque as margens de lucro diminuem) tende a impor uma tendência geral à redução dos investimentos. Mas há habitualmente uma diferença bastante importante no tempo entre o momento onde a decisão de reduzir os investimentos é tomada e o momento onde a produção industrial começa a estabilizar-se ou a diminuir, porque as antigas decisões de investimento demoram a produzir efeitos produtivos. Esta diferença (time lag) é um mecanismo fundamental; explica a eclosão das crises. A descontinuidade das decisões de investimento, os movimentos de entusiasmo (no sentido da expansão ou do aperto) constituem a explicação técnica.

Mas a causa mais profunda das crises periódicas reside simultaneamente na queda periódica da taxa de lucro e na diferença crescente entre a capacidade de produção e a procura solvável dos produtos acabados, diferença que qualquer produção para o produto acaba por dar lugar. Poder-se-ia imaginar em caso de absoluta necessidade uma “programação” económica que liga à parte relativamente declinante do valor acrescentado que cabe às massas uma parte declinante da produção de bens de consumo na produção global. Esta tendência verifica-se aliás a longo termo. Mas o crescimento da produção de bens de investimento, quaisquer que sejam as voltas cada vez maiores que toma o processo de produção antes de chegar ao “último consumidor”, acaba sempre por aumentar a capacidade de produção de bens de consumo. É por isso que o entusiasmo dos investimentos – indissociavelmente ligado ao regime de propriedade privada dos meio de produção e aos múltiplos centros de decisão para os investimentos importantes, isto é a concorrência e a anarquia da produção – conduz necessariamente à superprodução periódica.

A irracionalidade do modo de produção capitalista.

As crises periódicas de superprodução são a expressão mais nítida da irracionalidade fundamental do modo de produção capitalista. Trata-se aliás de uma irracionalidade particular: a produção capitalista combina uma racionalidade cada vez mais desenvolvida no seio da empresa com uma irracionalidade no seio do sistema considerado no seu conjunto. E às tendências de planificação no interior da empresa, da companhia ao trust juntam-se cada vez mais tendências na programação económica nacional, que colocam em relevo a natureza irracional do sistema à escala internacional.

Esta irracionalidade não é senão uma expressão particular da contradição fundamental do modo de produção capitalista: a contradição entre a tendência à socialização progressiva da produção e a manutenção da apropriação privada. A socialização progressiva da produção estabelece laços da interdependência cada vez mais numerosos e cada vez mais complexos entre as empresas, os produtores e os indivíduos do mundo inteiro. Ela tende a fazer depender a sorte de cada um do desenvolvimento da qualificação técnica e intelectual de todos. Ela tende a socializar os custos de satisfação das necessidades cada vez mais numerosas (ensino, saúde, pesquisa científica, construção de estradas, transportes urbanos, luta contra a poluição do ar e das águas). Mas ao mesmo tempo, toda esta mecânica cada vez mais complexa e delicada não pode funcionar senão sob a condição que uma ínfima minoria de homens – os grupos financeiros que dispõem dos principais meios de produção e de troca – realizem os seus lucros. Senão, será necessário reduzir a produção apesar das imensas necessidades insatisfeitas e condenar ao desemprego e à miséria milhões de homens “porque se produz demasiado”. Reduzir-se-ão os recursos e as possibilidades de desenvolvimento de povos inteiros porque o preço das matérias-primas cai. Pré-selecciona-se e limita-se o acesso ao ensino superior “por falta de recursos”, a prioridade tendo sido dada à produção de bens de destruição em detrimento do desenvolvimento do capital intelectual da nação.

Alienação e luta de classes

Esta contradição entre a socialização crescente da produção e de toda a vida económica, por um lado, e a manutenção da propriedade privada, por outro, cristaliza-se no processo de concentração e de centralização crescente do capital, precisamente à medida que os países se tornam “mais ricos” (e que o nível de vida das massas sobe em termos reais). Na maior parte dos países ocidentais, algumas dezenas de grupos financeiros – e, os mais pequenos entre eles, apenas uma dezena – controlam as principais alavancas de comando da vida económica. E o processo de internacionalização crescente do capital chega a uma situação onde, daqui a uma vintena de anos, cerca de 300 “companhias multinacionais” controlarão a vida económica do mundo capitalista (Cf. P. J. Barber, “Les entreprises internationales”, in Analyse et Prévision, Setembro 1966 e The Economist, 13 Julho 1968).

No plano social, a generalização da produção mercantil traduz-se pela reificação e uma alienação generalizada das relações humanas. O operário – e, de maneira crescente, igualmente o empregado e o produtor intelectual – é alienado dos instrumentos de trabalho, dos produtos do seu trabalho e do próprio processo de produção. Ele não passa de um apêndice de uma imensa máquina que o tritura sob a fadiga física e nervosa ou sob o aborrecimento. O tempo passado na empresa é considerado como tempo perdido para a verdadeira vida, dispensado simplesmente para ganhar os meios de vida fora do trabalho. O enorme desenvolvimento das forças produtivas, tornado possível pelo capitalismo, aumenta, na verdade, os lazeres. Mas o homem alienado no trabalho não pode libertar-se da alienação nos “tempos livres”. Após ter sido alistado na indústria produtiva, eis que ele é colhido pela comercialização dos lazeres, manipulado pelos meios de difusão massiva: é-lhe interdito de livremente e espontaneamente se desenvolver, tanto no seu trabalho que fora dele.

As contradições do modo de produção capitalista alimentam e exacerbam a luta de classes. Esta, espontânea e elementar, torna-se consciente e organizada. Os trabalhadores não se limitam mais a combater por “uma parte maior do bolo”. Eles constituem-se em movimento político que procura transtornar as próprias estruturas da sociedade. O seu ideal é então substituir uma economia fundada no lucro privado por uma sociedade virada para a satisfação das necessidades de todos. Eles não poderão chegar aí senão substituindo a propriedade privada dos meios de produção pela propriedade colectiva, gerida pelos próprios produtores, substituindo a anarquia e a concorrência fundamentais da produção capitalista por uma planificação socialista na qual os grandes projectos de investimentos serão decididos democraticamente pela massa da população trabalhadora.

4- As etapas históricas do capitalismo.

Até aqui, o capitalismo atravessou três etapas históricas, cada uma ligada a uma revolução das técnicas industriais, e a modificações profundas das relações entre as classes sociais, no seio dessas mesmas classes e entre as diferentes zonas geográficas onde se implantou o sistema capitalista internacional.

A primeira revolução industrial

A época do capitalismo de livre concorrência está estreitamente ligada à primeira revolução industrial, ou seja, às máquinas movidas pela força do vapor. Os ramos industriais fundamentais são o têxtil, a indústria carvoeira, a indústria da fundição. Os investimentos principais são, além dos investimentos das primeiras fábricas, a construção de caminhos-de-ferro. A indústria é essencialmente situada na Grã-Bretanha, Bélgica, França e na Alemanha ocidental; o resto do mundo é um imenso mercado para esta oficina industrial. Uma grande parte do Terceiro mundo (a África tropical, a China, a Ásia Central e do Sudeste, a maior parte do mundo árabe) fica ainda de fora da esfera de operação do capital.

No seio da classe capitalista, o industrial é o rei. É um empreendedor individual, mesmo quando ele está à cabeça de uma sociedade anónima. Ele é individualista, partidário das trocas livres, favorável à monarquia constitucional, ou à república liberal. Ele admite com relutância o sufrágio universal, pois o Parlamento deve essencialmente controlar os rendimentos e as despesas do Estado, e que o povo paga relativamente poucos impostos. Quanto à classe operária, ela é pouco organizada, dobrada sob o peso da miséria e pronta somente a explosões periódicas das revoltas da fome.

A industrialização de toda a Europa ocidental criou um problema de escoamento cada vez mais angustiante para o capital. Os capitais acumulados nas velhas metrópoles encontram aí cada vez menos emprego frutuoso. Começam também, ao mesmo tempo, a corrida para a partilha do Terceiro mundo em zonas de influência, a extensão dos grandes impérios coloniais, a exportação dos capitais em direcção dos países menos industrializados, o emprego dos capitais assim exportado para assegurar um escoamento estável de certos novos ramos chave da indústria, sobretudo a siderurgia.

Ao mesmo tempo, a base energética e tecnológica da indústria modifica-se. O motor eléctrico e o motor de explosão substituem pouco a pouco a máquina a vapor. Ao lado da siderurgia, os ramos principais da indústria capitalista são agora a construção mecânica e eléctrica, a indústria petrolífera, a indústria automóvel. É a segunda revolução industrial.

O imperialismo

A estrutura interna da classe burguesa não se modifica de forma menos profunda. A concentração de capitais, sobretudo nos novos ramos em expansão, deixam subsistir somente algumas firmas dominantes. Estas deixam progressivamente de praticar a concorrência sistemática pela baixa de preços: os acordos capitalistas tornam-se a regra. Carteis, trusts, holdings, grupos financeiros asseguram copiosos lucros monopolísticos, aos quais se juntam os super lucros coloniais e semi-coloniais. No seio da classe burguesa não domina mais o industrial individual, mas o capitão da indústria, o grande capitalista, o criador de impérios financeiros. A centralização dos capitais disponíveis nos bancos dá a estes a preponderância numa fase de necessidades agudas de recursos para financiar a nova revolução industrial. Os bancos penetram na indústria e tornam-se as forças dominantes. É o apogeu do capital financeiro, do capitalismo dos monopólios, do imperialismo.

Quanto à classe operária do Ocidente, progressivamente libertada do desemprego permanente que cai sobre ela durante um século, organiza-se cada vez mais nos primeiros partidos socialistas de massas e nos primeiros sindicatos. Ela emprega a força assim adquirida para obter melhores salários, uma redução da semana de trabalho, a primeira legislação social. Os super lucros coloniais e monopolísticos fornecem a margem de manobra que permite ao capital fazer concessões.

Mas o novo equilíbrio é instável. Ele durará menos de um quarto de século (essencialmente o período 1890-1914). A concorrência inter-imperialista agrava-se, é acompanhada de uma corrida aos armamentos cada vez mais desenfreada, de múltiplas guerras coloniais e de “guerras locais” (guerra russo-japonesa, guerra italo-turca, guerra dos Balcãs) que anunciam a conflagração mundial. A carga de armamentos e o declínio da taxa de lucro reduz a margem de concessões do capital; o aumento dos salários reais pára.

Os conflitos sociais, que parecem momentaneamente atenuados por volta do início do século, tomam de novo um aspecto cada vez mais violento (revolução russa de 1905, ascenso revolucionário russo na véspera da Primeira Guerra mundial, movimentos pela reforma do sistema eleitoral na Prússia, greve geral de 1905 pelo sufrágio universal na Áustria, de 1913 na Bélgica, greve geral na Itália contra a guerra, etc.) Explosões anunciam-se, atrasadas momentaneamente pela Primeira Grande guerra à qual se resignam as velhas direcções sociais-democratas no Ocidente. Elas eclodem com a revolução russa de 1917, a revolução alemã de 1918, o ascenso revolucionário de 1918-1923 em toda a Europa.

Simultaneamente, a guerra russo-japonesa, a revolução russa de 1905 e ainda mais, a revolução russa de 1917 estimularam o acordar das nacionalidades do Terceiro mundo. Um movimento nacionalista afirmou-se por toda a parte; se ele continua a ser dirigido por uma burguesia nacional na Índia (Partido do Congresso) e na China (Kuomintang), ele permite o nascimento de um jovem movimento operário revolucionário que se afirmará rapidamente comunista e lutará para conquistar primeiro a sua autonomia, depois a hegemonia no seio do movimento revolucionário.

Assim se anuncia o declínio do imperialismo clássico, atingido o seu apogeu na véspera da Segunda Guerra mundial. Nas duas guerras mundiais, as diferentes potências imperialistas europeias enfraquecem-se mutuamente. Da Segunda Guerra mundial, o imperialismo americano é o único a sair reforçado do ponto de vista económico, financeiro e militar; ele está consciente da sua potência: a teoria do “super imperialismo” parece confirmada. Mas o imperialismo americano terá brevemente que enfrentar o ascenso da revolução no Terceiro mundo, que arrancará o país mais populoso do mundo – a China – da zona de exploração do capital; ele assistirá ao desenvolvimento rápido da potência económica e tecnológica da U.R.S.S.; e, para manter esta em xeque no continente europeu e no Extremo Oriente, o imperialismo americano deverá ele próprio contribuir para o renascimento do imperialismo europeu e japonês, que se transformarão de novo em temíveis concorrentes.

A revolução tecnológica

Entretanto, uma terceira revolução industrial começou, alimentada sobretudo pelo desenvolvimento tecnológico nascido da Segunda Grande guerra e da guerra fria: a electrónica, e a energia nuclear passam ao primeiro plano das técnicas produtivas. Os conjuntos automáticos e teleguiados substituem-se às linhas de montagem semi-automáticas. A aeronáutica, a indústria de computadores, a construção eléctrica, a petroquímica substituem a indústria siderúrgica e a construção mecânica como ramos industriais chave, disputando mesmo o primeiro lugar à indústria automóvel e ao petróleo.

Os trusts monopolistas emancipam-se pouco a pouco do controlo do capital financeiro; os enormes lucros que acumulam permitem-lhes uma taxa de auto-financiamento desconhecida antes da Primeira Grande guerra. Esses trusts multiplicam as filiais no mundo inteiro: assim nasce a “companhia multinacional”. Esse vasto movimento de concentração internacional de capitais tem por alvo os próprios países imperialistas. Os capitais privados – mesmo se a exploração dos poços de petróleo continua a atrair – afastam-se cada vez mais dos países do Terceiro mundo considerados como demasiado sujeitos a riscos de expropriação e de revolução social. As exportações de capitais, mais importantes que nunca, dirigem-se prioritariamente para os outros países imperialistas.

A industrialização do Terceiro mundo acelera-se, mas sem que este cesse de ser explorado nas trocas internacionais. Os países imperialistas, ao trocarem as máquinas por produtos têxteis ou conservas do Terceiro mundo, continuam a realizar super lucros, como faziam ao trocarem os seus produtos acabados por matérias-primas dos países coloniais e semi-coloniais.

As ameaças que pesam sobre a existência do sistema (revoluções sociais e crises catastróficas) obrigam este a um esforço de adaptação. O Estado intervém cada vez mais na vida económica; torna-se o garante do lucro dos monopólios. Assegura-lhes escoamentos estáveis no sector dos armamentos e um sector público doravante importante; ele tende a estabilizar o nível da procura global e dos investimentos ao aplicar uma política anti-cíclica e anti-crise. Ele esforça-se, através da programação económica, em coordenar e racionalizar os investimentos privados e estabilizar a taxa de exploração da mão-de-obra ao associar os aumentos de salários ao aumento da produtividade (política de rendimentos). É a fase do neo-capitalismo, que deixa primeiro a classe operária desorientada – falta de preparação organizacional e ideológica – por um período de expansão e de aumento do nível de vida de duração surpreendente. Mas logo que se anuncia o fim da longa fase de expansão 1945-1965, que as recessões se multiplicam e se generalizam, que as crises estruturais se mostram mais profundas, que o problema da alienação se coloca com toda a sua amplitude, novas explosões operárias se preparam, levadas sobretudo pelas jovens gerações e de que os acontecimentos de Maio-Junho de 1968 em França são um exemplo típico.

5- As contradições do neo-capitalismo

Momentaneamente encobertas pela duração da expansão neo-capitalista, as contradições clássicas do capitalismo surgem à superfície, embora sob uma forma modificada.

A “programação económica”, os estudos de mercado, a adaptação constante do volume da produção às flutuações da procura solvável pareciam ter resolvido o problema da superprodução periódica; mas esse problema ressurgiu dolorosamente: a capacidade de produção excedentária foi, na Primavera de 1967, de 25% para a indústria da Alemanha ocidental, um ano mais tarde de 25% em França, e de 20% nos Estados-Unidos em 1968. As carvoeiras, a siderurgia, a indústria têxtil parecem irremediavelmente atingidas; mas é já a vez da petroquímica e do automóvel. E o que é a capacidade excedentária, senão uma superprodução “congelada” ao nível das máquinas, em vez de ser cristalizada em mercadorias invendáveis?

As recessões

Com o espectro da superprodução, pensava-se ter exorcizado o perigo das crises. Mas eis que surgem as recessões. Elas manifestaram-se primeiro nos Estados-Unidos (1949, 1953, 1957, 1960) assim como na Grã-Bretanha e na Bélgica de maneira atenuada; elas eclodem sucessivamente na Itália (1964), em França e no Japão (1965), na Grã-Bretanha e Alemanha ocidental (1966). A expansão geral diminuiu e a crise do sistema monetário amplificou-se. Ao impor uma solidariedade cada vez mais impulsionada às autoridades monetárias dos principais países imperialistas, ela reduziu do mesmo modo a sua capacidade em responder de maneira autónoma, às ameaças de sobreaquecimento ao provocar recessões prematuras e mais limitadas. Assim, o sistema orienta-se para uma recessão geral que, sem ser comparável à crise de 1929-1933, ultrapassa no entanto em amplitude, todas as perturbações conhecidas desde da Segunda Guerra mundial.

O desastre de uma grave crise do tipo de 1929 foi evitado graças às despesas colossais de armamento: perto de 100 biliões de dólares por ano para os países imperialistas. A única recessão moderada que a Alemanha ocidental conheceu em 1966-1967 reduziu os recursos disponíveis durante três anos em cerca de 50 biliões de Marcos. Se o estrago causado pelas recessões é inferior àquele que provocou a crise de 1929-1933, é necessário acrescentar as perdas causadas pelo sub-emprego permanente do aparelho de produção e pelos imensos recursos utilizados para o fabrico dos meios de destruição. Assim, o balanço do desperdício e irracionalidade do sistema é mais que pesado.

Uma irracionalidade crescente

Este balanço é ainda mais evidente quando se toma consciência da polarização progressiva dos recursos nos países industrializados e do empobrecimento progressivo dos países do Terceiro mundo. As despesas sumptuosas e insensatas do Ocidente teriam podido fornecer os recursos que teriam permitido evitar as fomes terríveis, como as que atingiram a Índia e o Paquistão em 1966-1967 e a África tropical – sobretudo a Nigéria – em 1967-1968. Para salvar uma só vida humana, em condições excepcionais, despende-se no Ocidente o equivalente que salvaria cem a quinhentas vidas humanas nos países subdesenvolvidos. Os recursos desperdiçados no armamento poderiam assegurar, no espaço de algumas décadas, uma industrialização sem lágrimas do Terceiro mundo, sem que fosse reduzido de qualquer maneira o nível de vida no Ocidente.

As forças produtivas continuam a aumentar a um ritmo acelerado, mas este crescimento

é cada vez mais anárquico e irracional no plano global, apesar de todos os esforços de racionalização ao nível das empresas, das firmas e mesmo das nações. A concentração das decisões estratégicas entre as mãos de alguns indivíduos mostra ser uma barreira intransponível da racionalidade económica. Erros de julgamento levam a perdas imensas (Blue Streak na Grã-Bretanha, escolhas erradas de sistemas de computadores pela IBM, investimentos siderúrgicos já tecnologicamente ultrapassados no fim dos anos cinquenta), cujas despesas são pagas pelas populações deixadas na ignorância dos elementos do problema. Os riscos de ver a imensa concentração de informações disponíveis nos cérebros electrónicos gigantes ficar à disposição exclusiva de um núcleo de homens de negócios e de altos responsáveis simbolizam a ameaça do autoritarismo irresponsável que resulta da concentração extrema do capitalismo na nossa época.

O desequilíbrio crescente entre a concentração privada e consumo colectivo reproduz no seio das nações imperialistas o desequilíbrio entre nações ricas e nações pobres. A ideia de despesas de solidariedade, de socialização dos custos de satisfação das necessidades elementares, em progresso constante no decurso dos anos trinta e quarenta sob a pressão de um movimento operário militante que ameaçava a existência do regime, está presentemente em declínio; e este último resulta do recuo temporário do movimento operário. Critica-se os “desperdícios” provocados pela “gratuitidade” dos serviços sociais, e fecha-se os olhos sobre o desperdício social, importante, que representa o aumento rápido das despesas individuais com bebidas alcoólicas, drogas e o jogo. Alarga-se de novo as zonas de desigualdade nos domínios da saúde, onde elas pareciam estar a ponto de desaparecer. A desproporção impressionante entre o desenvolvimento da produção automóvel e o atraso da construção de auto-estradas, parques de estacionamento e de transportes urbanos rápidos simboliza esta contradição entre o consumo individual, que o sistema procura desenvolver de forma ilimitada, e o consumo social, que ele continua a racionar de forma miserável.

Um proletariado renovado

As transformações tecnológicas provocadas pela terceira revolução industrial causam uma transformação completa na composição da classe operária; elas modificam completamente as condições de reprodução da força de trabalho. O trabalho manual não qualificado desaparece; o trabalho intelectual altamente qualificado – de formação universitária ou semi-universitária – é cada vez mais integrado nos processos de produção. Mas, à medida que o nível de cultura e de qualificação da classe operária se eleva, a estrutura hierárquica da empresa e a organização autoritária do trabalho tornam-se cada vez mais insuportáveis. A revolta dos estudantes contra a estrutura autoritária da Universidade anuncia e prepara a revolta dos trabalhadores contra a estrutura autoritária da empresa. Não são somente os acontecimentos de Maio-Junho 1968 em França ou a reaparecimento da extrema-esquerda na Alemanha Ocidental que a confirmam. A importância cada vez maior que as secções sindicais de empresa na Grã-Bretanha e na Itália concedem ao problema do controlo operário é sem dúvida um indicador também importante.

Assim o desenvolvimento do próprio neo-capitalismo demonstra o carácter ilusório da tese segundo a qual esse sistema teria resolvido o essencial das suas contradições económicas. Ele demonstra assim que o deslocamento do centro de gravidade das lutas anti-capitalistas em direcção dos países do Terceiro mundo não foi senão um episódio histórico. Qualquer que seja o papel de detonador que os estudantes e jovens em geral possam jogar nas lutas de classe exacerbadas às quais o neo-capitalismo já deu lugar, não são nessas camadas periféricas do mundo do trabalho, e ainda menos nas minorias super-exploradas, que será necessário procurar a força social capaz de jogar o papel de coveiro do capitalismo. Mais que nunca, o proletariado é o único capaz de preencher essa função, mas o proletariado renovado na sua composição social pelas revoluções tecnológicas em curso, e no qual se integram progressivamente todas as camadas assalariadas da população, cujas diferenças de remuneração, de modo de vida e de ideologia se atenuam à medida que se unificam as condições, os custos e o nível de qualificação.

6. O capitalismo pode sobreviver?

A capacidade de adaptação do sistema

Para que um sistema social desapareça, não é somente necessário que exista uma força social susceptível de a contestar na acção e de o derrubar. Também não basta que ele tenha dado provas da sua irracionalidade económica; é preciso que ele engendre obstáculos cada vez mais intransponíveis ao seu próprio desenvolvimento.

As diversas teorias apologéticas que questionam a impotência do neo-capitalismo para ultrapassar as suas próprias contradições baseiam-se na realidade na ideia da adaptabilidade infinita do sistema face aos desafios históricos sucessivos que ele encontrou (luta de classes, revolução russa, movimentos de emancipação do Terceiro mundo, crises económicas de tipo catastrófico, ameaças de destruição nuclear).

Paralelamente, as teorias, ditas de convergência, de aproximação estrutural entre o sistema capitalista e o sistema soviético, ou mais genericamente das contradições da sociedade dita industrial (Aron, Dahrendorf, Marcuse, Galbraith), ao questionar a natureza do capitalismo das sociedades surgidas desta adaptação progressiva, supõem que a continuidade da dominação social não foi interrompida. Se os gerentes retomam cada vez mais as rédeas do poder das mãos dos accionistas, como afirmam, se uma tecnocracia ou mesmo uma “meritocracia” sucede ao reino dos grandes financeiros, não há nem expropriação nem destruição do poder da classe capitalista. Haveria sobretudo substituição gradual das camadas dominantes no seio desta classe, transformação dos proprietários do capital de dominadores activos em aproveitadores passivos do sistema. Pode-se dificilmente contestar que as acções continuem a render dividendos e que mesmo os gerentes mais poderosos não conheçam outros modos senão a aquisição da propriedade privada para transmitir aos seus filhos os frutos da sua “posição dominante”.

Trata-se portanto de demonstrar que os mecanismos fundamentais do sistema capitalista – e não somente os traços aparentes, como a forma passageira que toma a direcção técnica dos negócios – acabarão por ser cada vez mais bloqueados e que os limites intransponíveis existem à adaptabilidade do sistema.

Os limites de adaptabilidade – A saturação das necessidades

O primeiro desses limites, e de longe o mais importante, é a irracionalidade crescente da economia de mercado, à medida que o desenvolvimento das forças produtivas faz passar a humanidade do estado de meia-penúria – estado clássico da economia mercantil – ao estado de uma abundância cada vez maior.

A partir do momento em que os consumidores deixam de reagir às flutuações dos preços, ou reagem a contra-senso (por exemplo o baixo consumo com a baixa de preços), a partir do momento em que a procura se torna inelástica, seja ao crescimento dos rendimentos seja às flutuações dos preços, ou então adquire uma elasticidade marginal negativa, um mecanismo fundamental da economia capitalista é definitivamente posto em causa. É já o caso, nos países industrializados mais desenvolvidos, da procura de numerosos bens alimentares (pão, batatas, frutos indígenas, carne de porco) e de certos produtos têxteis; é cada vez mais o caso de certos serviços públicos (antes de tudo os transportes urbanos colectivos). Qualquer sistema de produção que continua a se basear sobre a noção de “rentabilidade das empresas” engendra fatalmente a superprodução sistemática e a destruição de uma fracção de bens produzidos (é o caso da agricultura ocidental). Qualquer sistema de distribuição que quer a fortiori conservar a troca engendra desde então um desperdício desmedido; a distribuição gratuita, sob a forma de serviço, torna-se mais económica que a compra e venda.

A economia de mercado torna-se tão absurda no domínio da produção, à medida que os custos salariais e mesmo os custos das matérias-primas baixam para zero (por exemplo, a produção automática de objectos em matérias plásticas). A manutenção de critérios de rentabilidade individual das empresas e de distribuição mercantil de tais produtos implica preços de venda ao retalho cujas despesas de distribuição constituem uma fracção que não pára de crescer. O desperdício que ocasiona a manutenção da economia mercantil aparece então claramente.

A extinção do salariato

Segundo limite à adaptabilidade do sistema capitalista: os saltos em frente feitos pela automação minam um outro fundamento desta economia, o salariato. A noção de salário implica uma troca exactamente medida entre uma força de trabalho comprada por um período de tempo estritamente medido e uma quantidade limitada de bens de consumo (meios de pagamento que permitem adquirir esses bens de consumo). Quando a produtividade do trabalho humano progride de tal maneira que os bens de consumo susceptíveis de cobrir todas as necessidades razoáveis podem ser produzidos numa fracção muito reduzida de tempo de trabalho globalmente disponível, a solução racional é evidentemente de reduzir o tempo de trabalho de cada indivíduo de tal maneira radical que a própria noção de “salário” perde todo o seu sentido: “a economia dos Estados-Unidos, escreve Lord Bowden, encontra-se numa situação extraordinária. Cerca de metade da população activa é suficiente para satisfazer as necessidades reais dos habitantes do país – quer dizer a sua alimentação, alojamento, vestuário, automóveis – de maneira que os poderes públicos são obrigados a encontrar um emprego para a outra metade.” Assim não é mais necessário medir exactamente a despesa de trabalho de cada um; existe satisfação geral dessas necessidades elementares pelo facto da riqueza colectiva adquirida pela sociedade, e, em troca desta satisfação, desenvolvimento paralelo de actividades criadoras dos homens, tanto durante o “trabalho” como durante os “lazeres”.

Se o capitalismo tenta sobreviver à aproximação desta fase de automatização e de abundância, ele deve multiplicar artificialmente os empregos inúteis ou nocivos (forças armadas, intermediários, parasitas) a fim de “reabsorver o desemprego”, e, não menos artificialmente, manter grupos de homens fechados na indústria, quando eles são inúteis durante uma parte do dia de trabalho. A própria noção de “salário anual garantido” – e garantido tanto para os que trabalham verdadeiramente como para os desempregados – que é objecto de debate nos Estados-Unidos, mostra até que ponto nos aproximamos da superação do salariato.

Declínio do trabalho manual

Em terceiro lugar, a produção automática generalizada conduziria a produção de valores, a produção mercantil e a economia monetária a consequências absurdas. Se a automação se generalizasse – e é somente uma questão de tempo – no sector dos serviços e no da produção, ver-se-ia uma produção inteiramente automatizada deixar de dar lugar a um poder de compra de bens de consumo, pois os rendimentos da grande maioria da população extinguir-se-ia, assim como o emprego da mão-de-obra industrial, comercial e de serviços. A manutenção da economia monetária chegaria então a uma situação paradoxal: seríamos obrigados a distribuir gratuitamente “rendimentos monetários” à população para que ela pudesse continuar a “comprar” “mercadorias”, enquanto que seria muito mais simples distribuir gratuitamente esses bens de consumo abundantes. Na realidade, é impensável para o capitalismo passar para a automação generalizada da produção, da distribuição e dos serviços: tal automatização destruiria as próprias bases sobre as quais ele existe.

A hierarquia em perigo

O quarto e último limite absoluto do sistema capitalista reside no facto de que à explosão actual das forças produtivas corresponde não somente a possibilidade da automação generalizada, mas também a possibilidade de supressão de todo o trabalho não qualificado, mecânico, repetitivo. O acesso de todos os jovens ao ensino superior generalizado, que está inscrito nos factos (nos Estados-Unidos e na U.R.S.S., a percentagem de jovens tendo acesso às universidades é já respectivamente de 45% e 25% nas classes etárias em causa), é o equivalente, no domínio da reprodução da força de trabalho, desta exigência inerente ao progresso técnico. Mas uma empresa na qual só haveria engenheiros e sábios é evidentemente incompatível com a estrutura patronal, hierárquica, que corresponde à sobrevivência da propriedade privada. “A autoridade” que rebenta nos colóquios e debates entre universitários individualmente indispensáveis ao funcionamento da produção, seria inconcebível para qualquer autoridade capitalista ou burocrática.

Notar-se-á que os quatro “limites absolutos” do modo de produção capitalista – a saturação das necessidades racionais; a abundância que leva os custos de produção a zero e que mina a própria noção de salariato; a automação, que elimina o trabalho manual da produção e do consumo; a supressão das diferenças entre trabalho manual e trabalho intelectual, que condena a manutenção da estrutura hierárquica da empresa – projectam num futuro pouco longínquo, as tendências que já se manifestam parcialmente, pelo menos nos países capitalistas mais desenvolvidos. Não há nada de “utópico” nesta projecção: trata-se da generalização de tendências que se verificam já.

No plano puramente económico, as expressões concomitantes dessas tendências são: a abundância cada vez mais pronunciada de capitais; a inflação cada vez mais grave; os custos de produção que constituem uma fracção cada vez mais reduzida dos preços de venda “ao último consumidor”; a capacidade de produção excedentária cada vez maior; a obrigação de desviar uma fracção crescente da população activa e dos recursos materiais para empregos irracionais; a impossibilidade crescente de determinar a distribuição nacional dos “factores de produção” em função dos imperativos de lucro dos grandes capitalistas (mesmo sem falar da sua distribuição internacional, tragicamente inadequadas). Isso significa que os mecanismos que asseguram o funcionamento automático do sistema são cada vez mais inoperantes, que esse funcionamento exige cada vez mais intervenções e manipulações extra-económicas. A questão coloca-se então de forma evidente: poderemos continuar a fazer funcionar a economia de dois terços da humanidade em função unicamente do lucro das famosas trezentas companhias multinacionais que dominarão o mundo capitalista daqui a uma vintena de anos, enquanto que essas companhias não podem mais, sozinhas, assegurar o funcionamento da economia e são obrigadas a “socializar” fracções cada vez maiores das suas actividades e dos seus custos? Se a economia não pode mais sobreviver senão sob a direcção consciente da sociedade, não deverá ela funcionar no interesse da colectividade, sob gestão democrática desta colectividade, em vez de funcionar às custas da colectividade sob a autoridade de alguns magnatas da finança e de tecnocratas?

Nós não queremos de forma nenhuma concluir que o capitalismo subsistirá até que todas as implicações derradeiras da sua irracionalidade contemporânea sejam realizadas na totalidade e até ao absurdo. Nós queremos simplesmente sugerir os obstáculos que impedem a sobrevivência do sistema, obstáculos engendrados pelas suas próprias tendências. O resto é uma questão da intervenção consciente das forças sociais – isto é, da praxis revolucionária, política e social – e de um esforço deliberado para derrubar o regime no momento de uma das suas múltiplas crises políticas, económicas, culturais, militares, internacionais, e de o substituir por uma sociedade socialista fundada na democracia socialista e na auto-gestão colectiva e planificada dos trabalhadores.

 


Tradução de Eduardo Velhinho.

 

Texto original aqui.