POUM 1935-2005: A nossa herança teórica

Tomando como pretexto os setenta anos da guerra civil espanhola, publicamos este texto não para soprar as velas mas para lembrar a importância de uma das mais ricas, marcantes (e difíceis) experiências revolucionárias do século passado e aprender com os combates e as ideias das correntes não‑estalinistas que souberam actualizar na prática a força de um marxismo vivo. Artigo de Jaime Pastor.


Para compreender a importância da contribuição teórica daqueles que militaram no POUM, seria necessário começar por recordar as condições em que se desenvolveu o marxismo no Estado espanhol até à guerra civil. Só assim se poderá fazer uma avaliação justa do que significou o marxismo crítico, independente e revolucionário de lutadores como Andrés Nin, Joaquín Maurín, Juan Andrade, os irmãos Arenillas, Fersen e muitos outros menos conhecidos hoje.

Marxismo versus anarquismo

É sabido que na batalha entre as duas correntes que deram lugar à Primeira Internacional e à sua posterior divisão, foram os anarquistas que ganharam no seio do movimento operário do Estado espanhol. Sobre as causas dessa vitória escreveu‑se e discutiu‑se muito: existem razões objectivas, como as relacionadas com o carácter mais atrasado da formação social espanhola, com o maior peso do campesinato e a sua influência na classe operária que se vai estabelecendo na Catalunha; os efeitos da frustração posterior ao fracasso da revolução de 1868 e da Primeira República no desenvolvimento de um forte sentimento popular antiestatal, para além de outros factores mais complexos.
Mas estas causas não são suficientes por si só para entender esse triunfo anarquista, já que noutros países, como na própria Rússia, também existiam em certa medida. Por isso é inevitável reconhecer também o efeito negativo que tiveram as debilidades daqueles que apareceram como portadores do marxismo na península, tal como indica, por exemplo, Fernández Buey1: a sua acentuação unilateral da versão estalinista dessa doutrina; o seu desprezo pela questão agrária, ou a escassa preocupação que mostram em analisar e influenciar o processo de formação da classe operária e da sua consciência nos principais centros industriais.
O que resulta de todo este conjunto de causas, objectivas e subjectivas, é que o marxismo ibérico da Primeira e Segunda Internacionais é especialmente pobre em comparação com a maioria dos países europeus. Só se puderam salvar da mediocridade obras como o famoso Informe a lª Comisión de Reformas Sociales de Jaime Vera e alguns artigos e obras menores.
A corrente que representa o marxismo, encabeçada por Pablo Iglesias, manifestava claramente essas limitações, agravadas pelo facto de se concentrar em Madrid, que era então uma capital puramente burocrática perante a verdadeira capital industrial que era Barcelona. Isso é o que os futuros dirigentes do POUM censurarão ao pablismo. Joaquín Maurín dirá, por exemplo, que Pablo Iglesias «não compreendeu nunca que o problema de Espanha não consistia em transformar a aristocracia operária de Madrid em dirigente do proletariado, mas antes em conquistar totalmente as zonas industriais, elevando o proletariado mais forte à condição de dirigente da classe trabalhadora em geral2». Talvez a este juízo condenatório só tenha escapado a penetração que o PSOE teve no proletariado vizcaíno.
Mas o pior da imagem que adquiriu o marxismo oficial até finais do primeiro terço do século XX foi que, apesar da sua limitada implantação operária, praticou um obreirismo muito conservador contra qualquer esforço intelectual de actualização marxista.
Uma das melhores críticas do que significou esse marxismo, tão prematuramente reformista, encontra‑se precisamente numa obra não reeditada de Juan Andrade, “La burocracia reformista en el movimiento obrero”, publicada em 1935, e na qual faz uma denuncia bastante pormenorizada do funcionamento oligárquico do PSOE e da UGT. Nessa obra o autor assinala como “pelo seu carácter obreirista, e não operário, o pablismo era profundamente anti‑intelectual; mas entendamo‑nos: não apenas inimigos do arrivismo intelectual, mas de tudo o que representasse inquietação pelos problemas teóricos e da luta de classes”. E concluía, coincidindo com Maurín, dizendo que “por esta propensão natural de concentrar as suas actividades na capital e de fazer da burocracia madrilena o centro dirigente, abandonou o proletariado catalão nas mãos do anarquismo. Também pela mesma razão, até muito recentemente, o proletariado agrícola foi mais influenciado pela Confederação do que pelo ugetismo”.
Felizmente, perante essa versão pablista aparecerá outra, apoiada numa revolução triunfante, a revolução russa. O seu profundo impacto internacional chegará aqui e contribuirá para o surgimento de uma nova geração de marxistas revolucionários. Estes identificam‑se com os bolcheviques, vindos tanto da social‑democracia como do anarcosindicalismo. As trajectórias políticas de Andrés Nin, Joaquín Maurín ou Juan Andrade são em si mesmas reveladoras de uma nova etapa, em que se trata de superar a dicotomia entre as duas velhas correntes do movimento operário, através da formação de um novo partido capaz de atrair os sectores revolucionários presentes no PSOE ou na CNT.

Marxismo versus estalinismo

Mas, desgraçadamente, o período de tempo que tiveram para tornar realidade esse objectivo foi curto. Rapidamente começará a dar‑se a ascensão do estalinismo na URSS e com a “bolchevização” e burocratização do novo PC, vendo‑se forçados os principais pioneiros do novo marxismo revolucionário a abandonar ou a serem expulsos das fileiras de um partido que ajudaram a construir de uma forma decisiva. Bastaria para demonstrar este facto recordar o papel de Juan Andrade na fundação do PC e na direcção e edição das suas publicações dos anos 20, o de Maurín na criação da Federação Catalã, ou o de Nin como dirigente da Internacional Sindical Roja e amigo de Lenine, Trotsky, Gramsci, entre outros.
Uma vez fora do PC, todos eles continuarão o seu esforço em ir definindo um marxismo vivo, fiel aos ensinamentos da Revolução Russa e não à caricatura que vai transmitindo o novo marxismo oficial. O seu trabalho não foi inútil.
Nos primeiros anos da Segunda República o seu trabalho será imenso. Este juízo não é parcial, pois felizmente é uma opinião generalizada hoje entre os estudiosos deste período.
Comentários respeitantes às revistas da época, de pessoas politicamente tão díspares como Fernández Buey, Paul Preston o Santos Juliá, confirmam‑no. O primeiro deles faz o seguinte comentário:
“O mais vivo (refere‑se ao marxismo) durante esses anos esteve nas revistas teórico‑políticas ligadas às organizações marxistas então existentes, assinaladas em Comunismo e Leviatán. Neste, um marxismo muito vinculado aos problemas e aspirações dos trabalhadores num Estado que se autodefine eufemisticamente como República de trabalhadores, que enfrenta uma grave crise económica, com a resistência dos privilegiados a ceder parcelas do seu poder, com o surgimento do fascismo e com o impulso da própria classe operária; um marxismo que redescobre e põe em primeiro plano a motivação emancipatória da obra de Marx, que conhece e compara recentes experiências europeias e que ensaia a análise concreta da situação concreta”
Comunismo era a revista da Izquierda Comunista, na qual escreviam Nin, Andrade (que era director e usava vários pseudónimos), Fersen e Esteban Bilbao, entre outros. Leviatán era a revista que dirigia Luis Araquistain, da esquerda do PSOE, e na qual colaboravam assiduamente os antes citados e Joaquín Maurín. A apreciação positiva da importância destas revistas deveria estender‑se também à Nueva Era, publicação primeiro do Bloc Obrer i Camperol e depois do POUM.
Que características ou que contribuições haveria a destacar sobretudo naquilo que escreveram e defenderam publicamente os dirigentes do POUM?
A primeira, na minha opinião, seria a capacidade demonstrada de dar um enfoque internacionalista aos problemas da revolução espanhola, superando assim o provincianismo pablista. Estavam conscientes da nova época inaugurada pela Revolução Russa, de que se tinha quebrado o elo fraco da cadeia imperialista e, por conseguinte, de que a internacionalização da economia e da luta de classes exigia uma Intenacional disposta a analisar e intervir nos acontecimentos que se produzissem em qualquer parte do mundo.
Por essa razão, a sua participação na Terceira Internacional e na Internacional Sindical Roja será acompanhada da análise da ascensão do fascismo em Itália e depois na Áustria e na Alemanha assim como o distanciamento crítico em relação ao processo de burocratização na União Soviética, sem esquecer o processo revolucionário que se desenvolvia na China e noutros lugares do chamado terceiro mundo.
É, contudo, a sua atitude perante a URSS que tem maior mérito: num período em que o mito do primeiro Estado operário estava fortemente arreigado, a sua evolução e posterior ruptura com a Terceira Internacional não foram resultado de nenhuma frivolidade intelectual. Para todos eles, principalmente para militantes como Nin ou Andrade, foi uma verdadeira tragédia ter de romper com a nova direcção da URSS; de nada serviu a sua firme disposição de defender esse novo Estado contra o imperialismo para evitar as calúnias que imediatamente caíram sobre eles.
Na maioria destas questões, quem mais se destacou como analista foi Andrés Nin. Em obras como Las dictaduras de nuestro tiempo (em que polemiza com Cambó e estuda com muita precisão o fascismo italiano e a evolução incipiente na URSS), Las organizaciones obreras internacionales (na qual fará um balanço histórico das internacionais e do sindicalismo em geral) ou Los movimientos de emancipación nacional (na qual faz uma verdadeira antologia do pensamento marxista sobre esta questão), esse trabalho está bem patente (As três obras foram reeditadas por Fontamara, Barcelona).
Esta última obra de Nin entronca com outra preocupação importante daqueles que formaram o POUM, que é a busca das causas históricas da opressão nacional no Estado espanhol. Este interesse não era fácil na altura tendo em conta que o pablismo tinha sido e continuava a ser profundamente espanholista e que os principais movimentos nacionais da época, o da Catalunha e o do País Basco, eram dirigidos por forças pequeno‑burguesas e burguesas.
Sobre isto há páginas extremamente interessantes no que opinou Maurín em obras como La revolución española, Revolución y contrarrevolución en España3 e nos seus numerosos artigos, conferências e discursos, incluindo o que realizou  no Ateneu de Madrid em Junho de 1931. A sua relação com o catalanismo e a sua preocupação em arrebatar a base popular à Esquerra Republicana foram sem dúvida um bom motivo para tal.
Maurín procurou compreender o porquê do fracasso da unificação espanhola, contando já com contributos sobre este tema do próprio Marx e de Nin. A sua firme convicção, à luz da história, de que essa unificação tinha sido imposta reaccionariamente, levou‑o a afirmações tão taxativas como “A Espanha é hoje um conjunto de povos prisioneiros de um Estado policial”, inclusivamente na Segunda República. Desta tese deduziu a necessidade de apoiar abertamente o movimento nacional na Catalunha e de combater, como diz Antoni Monreal, “a partir do catalanismo radical contra a pequena burguesia radical”4. Daí até à defesa da separação da Catalunha era um passo, que ele não duvidou em dar, e que lhe valeu duras críticas por parte de Nin e de Trotsky.
Segundo Maurín, era necessário “separar para unificar de imediato. A verdadeira unidade Ibérica, com Portugal e Gibraltar, só poderá realizar‑se através do triunfo da classe trabalhadora. Morto o Estado semifeudal opressor, as nacionalidades ibéricas formarão uma União de Repúblicas Socialistas”5.
Esse separatismo táctico foi alvo de fortes polémicas, mas pelo menos obrigou a ter em conta a importância que estavam a adquirir os movimentos nacionais no processo revolucionário espanhol. Talvez seja nisto onde mais claramente fica demonstrado que os futuros dirigentes do POUM não se limitaram a praticar a analogia histórica com a revolução russa mas, aprendendo com ela, tentaram compreender as particularidades do processo em que intervinham. Os ensinamentos de Outubro de 1934 conduziram a uma aproximação entre Nin, Maurín e as suas respectivas organizações, expressa numa parte acerca da questão nacional nas teses de fundação do POUM: nelas insistia‑se tanto na defesa do direito à autodeterminação, incluindo a independência, como na necessária unidade do proletariado de todo o Estado.
Uma breve reflexão sobre esse debate pode ser feita agora, e há que dizer que embora as críticas da Izquierda Comunista fossem acertadas em alguns aspectos, esta organização mostrou uma certa rigidez na hora de determinar a existência de nacionalidades e, sobretudo, na táctica a adoptar em relação aos movimentos nacionais, particularmente no País Basco (como se pode constatar na própria evolução dos escritos dos irmãos Arenillas) ou na possibilidade ou não de defender a partir do marxismo uma opção independentista.
Quanto a Maurín, a sua saudável intenção de compreender e procurar formas de relação entre o movimento nacional e o movimento operário ia acompanhada de uma tendência a generalizar a existência de nacionalidades no Estado espanhol, assimilando a estas inclusivamente a questão colonial marroquina, e a fomentar assim os nacionalismos em detrimento do protagonismo na luta do movimento operário.
De qualquer modo, conviría também recordar que o próprio Trotsky não descartou completamente uma mudança de táctica relativamente a esta questão em função do desenrolar dos acontecimentos. Assim, por exemplo, no início do conflito de 1934 entre a Generalitat e o governo central, chegou a propor à Izquierda Comunista que fizesse “agitação (através da sua própria organização e da Alianza Obrera) a favor da proclamação de uma república catalã independente, e devem exigir, para a garantir, o armamento imediato de todo o povo (…) O proletariado deve mostrar às massas catalãs que tem um sincero interesse na defesa da independência catalã”6

Revolução e guerra

Partindo desse internacionalismo militante, para fora e para dentro, outro trabalho que se pode destacar em todos eles foi o de tratar de definir a natureza da revolução espanhola.
Apesar da Izquierda Comunista ter sido acusada pelo próprio Maurín de decalcar os esquemas da revolução russa, não foi isso que pretenderam fazer os membros desta corrente. É certo que o exemplo bolchevique tendia a ser exportado como modelo. Mas à medida que ia mergulhando na história e nas lições dos primeiros anos da Segunda República, eram as especificidades espanholas que iam sendo postas em primeiro plano. Assim em Comunismo podemos ver análises lúcidas acerca da questão agrária, sobre a questão nacional, como já indicámos, ou sobre o papel cada vez mais importante que desempenham os sindicatos. As suas aplicações das teses da revolução permanente impedirá, por exemplo, que desprezem as tarefas democráticas de uma revolução burguesa frustrada (ao contrário do que sucederá com o PC oficial na sua tendência ultraesquerdista); e a sua fidelidade às teses da Frente Única Operária (Frente Único Obrero) dos primeiros congressos da Internacional Comunista permitir‑lhe‑á manter uma linha de continuidade ao longo de todo o período republicano, face aos ziguezagues de uns e outros.
No caso de Maurín e do BOC, é certo que tanto a sua reticência em tomar partido nos debates da Terceira Internacional (excepto no que se refere ao tipo de centralismo democrático que se podía aplicar dentro dela e que levou alguns a considerá‑lo precursor do policentrismo) como a sua especial preocupação relativamente à questão nacional estimularam um esforço maior para estudar a história e a sociedade espanhola, tal como se reflecte nas suas duas obras anteriormente citadas. Tentou definir uma estratégia revolucionária que pretendia ser diferente tanto das posições social‑democratas e estalinistas como das trotskistas. A fórmula que encontrou foi a de “revolução democrático‑socialista” que acabará por ser adoptada nas teses do POUM pelo sector vindo da Izquierda Comunista.
Na realidade, depois de Outubro de 1934, tanto Maurín como Nin coincidiam na opinião de que as tarefas pendentes da revolução eram democráticas e socialistas e, portanto, a opção que se colocava era entre fascismo ou socialismo.
As teses do novo partido, o POUM, juntamente com as análises e propostas que farão os dirigentes deste partido no calor dos acontecimentos e da guerra civil, confirmam o grau de maturidade alcançado por duas correntes que fundem duas experiências distintas: uma, a dos que estiveram mais ligados ao trotskismo e à tentativa de intervir em sectores de esquerda da social‑democracia, e outra mais ligada ao sindicalismo revolucionário e ao catalanismo.
O começo do levantamento franquista, da revolução e da guerra civil produzir‑se‑ão no entanto menos de um ano depois da criação do novo partido. Num contexto internacional de ascensão do nazismo e do estalinismo, pôr em prática uma estratégia revolucionária não será fácil: primeiro, com a Frente Popular, e depois com a relação que se estabelece entre guerra e revolução, os dirigentes do POUM tentarão evitar que as lições da Alianza Obrera e as conquistas de Julho de 36 sejam abandonadas pela hegemonia das forças republicanas pequeno‑burguesas.
É à volta destas questões que continua a haver um desconhecimento grande das posições do POUM; perante as calúnias estalinistas, há que deixar bem claro que os dirigentes desse partido nem desprezaram a necessidade de derrotar Gil Robles, primeiro, e Franco depois, nem foram entusiastas defensores dos excessos anarquistas nas colectivizações. A única coisa que fizeram foi defender que, num período de revolução e contrarevolução, só a unidade operária e a extensão da revolução na rectaguarda eram garantia suficiente para acabar com o fascismo.
As suas polémicas com a ala direita do PSOE e com os estalinistas serão extremamente duras precisamente porque em função de objectivos inicialmente eleitorais e pouco depois puramente militares, irão quebrando a unidade operária e suprimindo as conquistas revolucionárias de Julho de 36. E também o serão com os anarquistas, pela sua ignorância do problema do poder político, que os levou desde o desprezo pela necessidade de organizar racionalmente o processo de colectivização até à participação dos seus dirigentes num governo que se enfrentou com sectores da própria CNT.
Questões pouco estudadas foram precisamente a política militar do POUM ou a sua atitude perante as colectivizações. Existem no entanto documentos interessantes sobre estes temas, especialmente sobre a organização económica da zona republicana, e mesmo depois da guerra Juan Andrade escreveu reflexões muito úteis7.
Não devemos esquecer, contudo, que neste período há duas etapas fundamentais: uma, a que vai de Julho de 36 a Maio de 37, e outra, a que chega até ao final da guerra. É na primeira fase que o público e o crescimento do POUM são grandes, sobretudo nas fileiras do anarco-sindicalismo. É portanto também quando, como dizia Andrade, existiu uma oportunidade histórica de reconciliar marxismo e bakuninismo através de uma frente revolucionária que substituiria a ausência de um partido marxista forte e converteria em pensamento e estratégia revolucionários o instinto combativo extraordinário de numerosos militantes da CNT e da FAI8.
Mas os obstáculos para que este processo se produzisse foram mais fortes do que as esperanças depositadas por Andrade, e a partir de Maio de 37, as piores acusações matarão a força do debate político e a solidariedade dentro do campo republicano.

A mulher e a revolução

É sabido que Maurín foi detido na zona fascista nos começos da guerra civil, e isto foi sem dúvida um grave inconveniente para o jovem partido. Os dirigentes do POUM souberam superá‑lo e a qualidade das suas análises e contributos demonstra‑se nas páginas da Nueva Era e La Batalla. Nelas se abordavam inclusive questões também pouco conhecidas hoje, como as relações com a escola, a saúde, a justiça, a situação da juventude ou a da mulher.
Sobre esta questão, um documento publicado pelo Secretariado Feminino do POUM em 1937 intitulado “La mujer ante la revolución”, merece que nos detenhamos um pouco. Nele se destacava o papel que estavam a ter as mulheres na revolução, assinalando que esta “indicou o caminho para a obtenção da igualdade de direitos da mulher no plano económico, no social e no político. Mas hão de vencer‑se muitos preconceitos profundamente arreigados (a bold no original), e ainda não estamos nós próprias de acordo acerca do que a nova sociedade nos possa dar e o que temos de exigir. Ainda não acreditamos de todo na nossa igualdade de capacidades, na nossa igualdade de direitos. A opressão que data de séculos levamo‑la ainda na massa do sangue e nem sequer a melhor legislação nos libertará dela da noite para o dia. A igualdade de direitos também não nos pode oferecer o socialismo. Só nos pode dar todo o tipo de possibilidades para a conquistarmos com o nosso esforço tomando parte na responsabilidade da vida social e na sua formação.”9
Neste parágrafo está condensada uma argumentação embrionária da necessidade de um papel autónomo das mulheres num momento histórico em que, como se constata noutras  partes do documento, ainda surge subordinado à sua integração no movimento operário e no partido revolucionário.
Também nessa declaração aparece uma firme defesa do direito ao aborto com razões mais claras do que as que dava o decreto aprovado pela Generalitat. As mulheres do POUM defendiam que «a mulher que não queira ter filhos por razões de saúde, económicas ou outros motivos fundamentais, terá à sua disposição meios para evitar a gravidez. E o mesmo para a mãe que não deseje trazer mais filhos ao mundo. De agora em diante, pois, poderá a mulher decidir livremente sobre o seu corpo.» Em resumo, esse direito não se justifica pelo “interesse da raça”, tal como pretendia a Generalitat, mas porque a mulher há‑de poder decidir sobre o seu próprio corpo.
Há, finalmente, outra contribuição menos brilhante, mais discreta, por parte daqueles que estiveram na IC e no BOC e depois no POUM: foram eles que, desde os princípios dos anos vinte, mais se preocuparam em traduzir e difundir obras e artigos dos clássicos marxistas e dos teóricos revolucionários da sua época.
Os escritos de Marx, sobre a revolução espanhola, por exemplo, obras de Lenine, Trotsky, Bukarine, Zinoviev, Bebel, Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai, Victor Serge, Alfred Rosmer, Lunatcharsky e muitos outros foram conhecidos pelos militantes de esquerda da época através das editoras e revistas desta corrente. Trata‑se de um trabalho comparável talvez com o que fizeram os anarquistas na sua própria tarefa divulgadora, mas não com o escasso trabalho realizado pelos que representavam o PC oficial.
E por último, seria necessário indicar que todo este conjunto de contribuições não se realizava num círculo fechado. Pelo contrário. A presença dos dirigentes e militantes da IC, do BOC e depois do POUM era grande, e sem relação directa com o seu reduzido peso numérico: as suas actividades nos sindicatos, nas associações, nas Casas do Povo, a sua colaboração com diversas editoras e publicações faziam com que as suas posições fossem amplamente conhecidas no movimento operário de então.

Recuperar a memória

O que poderíamos concluir desta breve passagem pela herança teórica do POUM?
Em primeiro lugar, que não só não é pobre mas que, tendo em conta as condições e limitações da época, como indicávamos de início, é rica, criativa e não apenas divulgadora, e vale a pena ser estudada pelas gerações de militantes marxistas que surgiram nos anos 60 e 70 e que na sua maior parte desconhecem hoje esse legado.
Mas, em segundo lugar, convém insistir que essa leitura necessária não pode obedecer apenas a razões de curiosidade histórica. No próximo ano [n.r.:1986] será o quinquagésimo aniversário da guerra civil e terá de servir, esperemos, para recapitular em comum quais foram os problemas, os pontos de vista e as estratégias que defenderam na altura as diferentes correntes do movimento operário. O peso terrível da derrota na luta contra o franquismo contribuiu para confundir muitos sobre as razões e a força real daqueles que, no campo republicano, defenderam uma via revolucionária consequente. Mas agora devemos fazer todo o possível para restabelecer a verdade histórica relativamente aos que levaram a pior parte na contenda.
Há, por último, uma justificação ainda maior para esse chamamento a conhecer e estudar o contributo teórico do POUM. Refiro‑me à utilidade que pode ter para enriquecer os nossos debates actuais. Desde a reivindicação de um internacionalismo revolucionário contra qualquer Estado‑guía até à luta pela construção de uma organização revolucionária forte e unida, passando pela sensibilidade especial a ter relativamente à questão nacional ou pela desconfiança profunda em relação às alianças com forças burguesas e às instituições parlamentares, os princípios comunistas que guiaram os fundadores daquele partido e que os levaram a passar a prova de fogo da revolução e da guerra hão de ser pontos de referência constantes para quem quer recolher a sua herança a partir da esquerda revolucionária de hoje.
* Jaime Pastor é Professor no Departamento de Ciencia Política da Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED) de Madrid. Este artigo foi publicado originalmente na edição castelhana da revista Inprecor nº 46, Dezembro de 1985, e republicado na revista Viento Sur de Novembro de 2005, de onde o traduzimos. Tradução de Pedro Rodrigues.

 

NOTAS

1- Marxismo en España, Sistema, no 66, mayo 85, Madrid
2-  Maurín, J. (1977). Los hombres de la dictadura, Barcelona, Anagrama
3-  Editadas respectivamente por Anagrama em 1977 e Ruedo Ibérico 1966
4- El pensamiento político de Joaquín Maurín, Barcelona, Ed. Península 1984
5- Maurín, J., La revolución española
6- “O conflito catalão e as tarefas do proletariado”, verão de 1934; publicado no número especial da edição em castelhano da revista Inprecor sobre o Outubro de 34, saído em Outubro de 1984.
7- Sobre este tema ver resoluções e artigos de Oltra Picó em Alba, V. (1977). La revolución española en la práctica, Madrid, Ediciones Júcar
8- “El marxismo y los problemas de la revolución española” e “Marxistas revolucionarios y anarquistas en la revolución española”,
em Andrade, J, (1979). La revolución española dia a dia, Barcelona, Ed. Nueva Era
9- Este documento aparece publicado no livro antes citado de Victor Alba