O site marxists.org continua a divulgar alguns dos livros publicados pela Editora Antídoto nos anos 70 e 80. Reproduzimos aqui parte do livro “Teoria marxista do Estado”, de Ernest Mandel, publicado em 1977 e um dos textos políticos de referência deste economista marxista.
A. A sociedade primitiva e as origens do Estado
O Estado nem sempre existiu.
Certos sociólogos e outros representantes da ciência política acadêmica laboram em erro quando falam do Estado nas sociedades primitivas.
O que fazem apenas na realidade é identificar o Estado com a comunidade. E, ao fazê-lo, despem o Estado da sua característica especial, isto é, o exercício de certas funções da comunidade como um todo, passa a ser uma prerrogativa exclusiva de uma pequena fracção dos membros dessa comunidade.
Por outros termos, o nascimento do Estado é o produto da divisão social do trabalho.
Enquanto esta divisão social de trabalho é apenas rudimentar, todos os membros da sociedade exercem, alternada e praticamente, todas as funções sociais. Não há Estado. Não há funções especiais de Estado.
Referindo-se aos Bushemanos, o Padre Victor Ellenber escreve que esta tribo jamais conheceu a. propriedade privada, nem os tribunais, nem autoridade central, nem órgãos especiais de qualquer tipo (1).
Outro autor escreve da mesma tribo: “O bando, e não a tribo, é o verdadeiro corpo político entre os Bushemanos. Cada bando é autônomo, levando a sua própria vida independentemente da dos outros. Os seus assuntos são, em regra, regulados por caçadores peritos e pelos homens mais velhos e experientes” (2).
O mesmo acontece com os povos do Egito e da Mesopotâmia na remota antiguidade: “o tempo não só não está amadurecido para a família patriarcal com a autoridade paterna, como para um agrupamento político realmente centralizado (…) Obrigações activas e passivas são colectivas no regime do clã totêmico. Poder e responsabilidade nesta sociedade activa têm caráter indivisível. Estamos em presença de uma sociedade comunal e igualitária, dentro da qual, no mesmo totem, a própria essência de cada indivíduo e a base da coesão geral colocam todos os membros do clã em pé de igualdade” (3).
Mas logo que a divisão social do trabalho se desenvolve e a sociedade se divide em classes, aparece o Estado e é definida a sua natureza: aos membros da sociedade como um todo, é negado o exercício de um certo número de funções; só uma pequena minoria toma o exercício dessas funções.
Dois exemplos ilustrarão este desenvolvimento, que consistiu em tirar à maioria dos membros da sociedade certas funções que primitivamente exerciam (coletivamente a princípio), com o fim de dar essas funções a um pequeno número de indivíduos.
Primeiro exemplo: Armas.
O exercício das armas é uma função importante. Engels disse que o Estado é, em última análise, nada mais do que um corpo de homens armados.
Na colectividade primitiva, todos os membros do grupo (e às vezes até as mulheres) andavam armados.
Numa tal sociedade, o conceito de que pegar em armas constitui uma prerrogativa particular de uma instituição chamada exército, ou polícia, ou agentes militares de vários tipos, não existe. Qualquer adulto masculino tem o direito de usar armas. (Em certas sociedades primitivas, a cerimônia da iniciação, que marca o início da maioridade, confere o direito ao porte de armas).
É exatamente o mesmo que se dá nas sociedades que ainda são primitivas, mas já próximas do estádio da divisão em classes. Por exemplo, pelo que se deu nos povos germânicos ao tempo em que atacaram o Império Romano: todos os homens livres tinham o direito ao porte de armas e podiam empregá-las na sua defesa e dos seus direitos. A igualdade de direitos entre os homens livres, que vemos. nas primitivas sociedades germânicas, é, de facto, a igualdade entre soldados, como a anedota do vaso de Soissons tão bem ilustra (4).
Na Grécia e na Roma antigas, as lutas entre patrícios e plebeus giravam muitas vezes em torno deste assunto do direito ao porte de armas.
Segundo exemplo: Justiça.
Em geral, a escrita era desconhecida nas sociedades primitivas. Não existiam portanto códigos escritos de leis. Mais ainda: o exercício da justiça pertencia à colectividade.
À parte contendas decididas por famílias ou pelos próprios indivíduos, só assembléias colectivas tinham o poder de pronunciar juízos. Na primitiva sociedade germânica, o presidente do tribunal do povo não julgava: a sua função consistia em verificar que eram observadas certas regras “e certas formalidades.
A ideia de que pudesse haver certos homens destacados da colectividade, a quem fosse reservado o direito de dispensar justiça, parecia aos cidadãos de uma sociedade baseada no colectivismo do clã ou da tribo, tão fora de sentido como o reverso parece à maioria dos nossos contemporâneos.
Em resumo: até certa altura do desenvolvimento da sociedade, antes de ser dividida em classes sociais, certas funções, tais como a das armas ou a administração da justiça, eram exercidas coletivamente – por todos os membros adultos da comunidade. Só quando esta sociedade se desenvolve mais, no momento em que aparecem classes sociais, é que estas funções são retiradas à colectividade e reservadas a uma minoria que passa a exercê-Ias de modo especial.
Quais são as características deste “modo especial”?
Examinemos a nossa sociedade ocidental no período em que o sistema feudal principia a ser dominante.
A independência (não formal nem jurídica mas muito real e quase total) dos grandes Estados feudais pode mostrar-se no facto de o senhor feudal, e só ele, exercer em todo o seu domínio todas as funções que tinham sido entregues à colectividade adulta nas sociedades primitivas.
Este senhor feudal é dono absoluto do seu reino. É o único com direito ao porte de armas em qualquer momento; é o único polícia, o único agente de autoridade; é o único com direito a cunhar moeda; é o único ministro das finanças. Exerce em todo o seu domínio todas as clássicas funções desempenhadas pelo Estado, tal como hoje o conhecemos.
Mais tarde, deu-se uma evolução. Enquanto o Estado é medianamente pequeno, as funções de “Estado” do senhor são rudimentares e nada complicadas; como o exercício dessas funções não rouba demasiado tempo ao senhor, ele pode manejar a situação e exercê-las pessoal mente.
Mas logo que aumente a extensão do território, e aumente igualmente a população, as funções da responsabilidade do senhor feudal tornam-se cada vez mais complexas, mais pormenorizadas e mais fatigantes. Torna-se impossível para um só homem exercer todas essas funções. Que faz então o senhor feudal?
Delega em parte os seus poderes em outras pessoas, mas não em homens livres, visto que estes pertencem a uma classe social em oposição à classe senhorial. Delega-os em pessoas completamente sob o seu controle: os servos, que são parte do seu pessoal doméstico.
Esta origem servil ainda se reflete em muitos títulos dos tempos atuais: “condestável”(ou chefe de polícia) vem de “comes stabuli”, servo chefe dos estábulos; “ministro” serf ministrable, isto é, o servo designado pelo senhor para servir as suas próprias necessidades; “marechal” é o servo que cuida da carruagem e dos cavalos, etc.(de marah scalc, do Velho Alto Alemão, que significa guarda de cavalos).
Porque estes indivíduos, homens não-livres, estes domésticos, estão sob o seu controle, o senhor delega parcialmente neles os seus poderes.
Este exemplo leva-nos à seguinte conclusão, que é o verdadeiro fundamento da Teoria Marxista do Estado:
O Estado é um órgão especial que surge em certo momento da evolução histórica da humanidade , e que está condenado a desaparecer no decurso da mesma evolução. Nasceu da divisão da sociedade em classes e desaparecerá no momento em que desaparecer esta divisão. Nasceu como instrumento nas mãos da classe dominante, com o fim de manter o domínio desta classe sobre a sociedade, e desaparecerá quando o domínio desta classe desaparecer.
Voltando atrás à sociedade feudal, notar-se-á que as funções de Estado exercidas pela classe dominante não se limitam apenas aos aspectos mais i- mediatos do Poder, tais como o exército, a justiça, as finanças. Também sob o dedo do senhor existem ideologia, lei, filosofia, ciência, arte, etc. Os que exercem estas funções são pobres que, para poderem viver, vendem os seus talentos ao senhor feudal, que se encarrega por sua vez das suas necessidades. Podemos e devemos incluir Chefes eclesiásticos na classe dos senhores feudais, uma vez que a Igreja era proprietária de vastas terras.
Nestas condições, pelo menos enquanto a dependência é total, o desenvolvimento da ideologia é inteiramente controlado pela classe dominante: esta é a única que ordena a “produção ideológica” e só ela é capaz de subsidiar os “ideólogos”.
Eis as relações básicas que temos que ter sempre em mente, se não quisermos perder-nos em emaranhados de complicações e de sutis distinções.
Escusado será dizer que, no decurso da evolução social, a função do Estado torna-se muito mais complexa, com muitas mais tonalidades do que tinha no regime feudal, tal como acabamos de descrever muito esquematicamente.
Contudo, temos de começar a partir desta clara e óbvia situação para compreendermos a lógica da evolução e o processo por que estas diferentes funções se tornaram cada vez mais autônomas e principiaram a parecer cada vez mais independentes da classe dominante.
B. O Moderno Estado Burguês
Origem burguesa do Estado moderno
Também aqui a situação é perfeitamente clara. O moderno parlamentarismo tem a sua origem no grito de guerra que a burguesia inglesa lançou com violência ao rei: “Nada de impostos sem a nossa representação!” Em palavras simples isto quer dizer: “Nem um chavo receberás de nós enquanto nada tivermos a dizer sobre a maneira como o irás gastar”. Podemos ver imediatamente que isto não é muito mais sutil do que a relação entre o senhor feudal e o servo nomeado para os estábulos. E um rei Stuart, Carlos I, morreu no cadafalso por não ter respeitado este princípio que se transformou em princípio sagrado; todos os representantes, diretos ou indiretos do aparelho de Estado, têm tido que lhe obedecer desde o aparecimento da moderna sociedade burguesa.
0 Estado burguês, um Estado de classe
Esta nova sociedade já não é dominada pelos senhores feudais, mas pelo capitalismo, pelos modernos capitalistas.
Como sabemos, as necessidades monetárias do Estado moderno – o novo poder central, mais ou menos monarquia absoluta – tornaram-se cada vez maiores, desde o século XV em diante. E o dinheiro dos capitalistas, comerciantes, banqueiros, negociantes, que, em larga parte, enche os cofres do Estado. Sempre, desde esse tempo, um vez que os capitalistas pagam para manter o Estado, exigirão que este se coloque inteiramente ao serviço deles. Tornam isto perfeitamente claro e sentido pela própria natureza das leis que promulgam e pelas instituições por eles criadas.
Várias instituições que hoje parecem de natureza democrática, por exemplo a instituição parlamentar, revelam claramente a natureza de classe do Estado burguês.
Assim, na maioria dos países em que foi instituído o parlamentarismo, só a burguesia tem direito a voto. Esta situação durou, na maioria dos Estados Ocidentais, até fins do último século e mesmo princípios do século XX.
O sufrágio universal é, como se sabe, de invenção relativamente recente na história do capitalismo. Como explicar este facto? Muito simplesmente. No século XVII, quando o capitalismo inglês proclamou: “Nada de impostos sem nossa representação!”, era apenas a representação da burguesia que ele tinha em mente; porque a ideia de que o povo, que nada tinha e não pagava impostos, pudesse votar, parecia-lhe ridícula e absurda.
Pois não é criado o parlamento para o próprio fim de controlar as despesas feitas com o dinheiro dos contribuintes?
Este argumento, extremamente válido sob o ponto de vista da burguesia, foi adoptado e desenvolvido pelo partido da burguesia doutrinária (5) no tempo em que se reivindicava o sufrágio universal. Para este partido burguês, o papel do parlamento consistia em fiscalizar orçamentos e despesas e só quem paga impostos tem essa fiscalização; quem não paga tem uma tendência constante para aumentar os gastos visto que não custeia as despesas.
Mais tarde, a burguesia começou a encarar o problema de outra maneira. Com o sufrágio universal nasceu o imposto universal que cada vez mais sobrecarga os operários. Foi deste modo que a burguesia restabeleceu a “justiça” inerente ao sistema.
A instituição parlamentar é um exemplo típico do laço muito direto e muito mecânico que existe – até no Estado burguês – entre o domínio da classe dominante e o exercício do poder de Estado.
Existem outros exemplos: Consideremos os jurados no sistema judicial. Os jurados parecem ser uma instituição eminentemente democrática no seu caráter, especialmente quando comparada com a administração da justiça por juízes inamovíveis, todos membros da classe dominante, sobre o qual o povo não tem qualquer controle.
Mas qual a camada social de onde eram escolhidos os jurados – e ainda, em muito larga medida, continuam hoje a ser escolhidos? Da burguesia. Havia mesmo qualidades especiais para ser jurado, comparáveis às necessidades para o voto, como a de ser proprietário – um jurado tinha de ser proprietário da sua casa e pagar uma certa quantia de impostos, etc.
Para ilustrar este laço muito direto entre o aparelho de Estado e a classe dominante na época burguesa, podemos citar a famosa lei de Le Chapelier, promulgada na Revolução Francesa que, a pretexto de estabelecer a igualdade entre todos os cidadãos, proibiu as organizações patronais e as dos trabalhadores.
Assim, sob pretexto da banir as corporações patronais quando a sociedade industrial tinha ultrapassado o estádio de corporação – foram postos fora de lei os sindicatos. Desta forma, os trabalhadores ficavam impotentes perante os patrões, visto que só a organização da classe operária pode (até certo ponto e em extensão bastante limitada) servir de contrapeso à riqueza dos patrões.
O ESTADO BURGUÊS – ASPECTO DA REALIDADE DIÁRIA
Por meio da luta empreendida pelo movimento operário, certas instituições do Estado burguês tornaram-se mais sutis e mais complexas.
O sufrágio universal foi substituído pelo sufrágio só de proprietários o serviço militar tornou-se obrigatório; todos deviam pagar impostos. O caráter de classe do Estado tornou-se então menos transparente. A natureza do Estado como instrumento do domínio de classe passou a ser menos evidente do que no tempo em que reinava a burguesia clássica, quando as relações entre os diferentes grupos no exercício de funções do Estado eram – tão transparentes como na época feudal.
A análise do Estado moderno terá de ser, portanto, um pouco mais complexa; estabeleçamos primeiramente a hierarquia entre as diferentes funções do Estado: Hoje só os mais ingênuos acreditam que o parlamento governa de facto, que é senhor do Estado, baseado no sufrágio universal. (Esta ilusão, contudo, está muito espalhada nos países onde o Parlamento é uma instituição criada de há pouco).
O poder de Estado é permanente e é exercido por um certo número de instituições isoladas e independentes dessa tão mutável e instável influência como é a do sufrágio universal. São estas instituições que devemos analisar se quisermos saber onde reside o verdadeiro poder: “Governos aparecem e governos desaparecem, mas a polícia e os administradores permanecem”.
O Estado é, acima de tudo, um conjunto de instituições permanentes: o exército (efetivo e de reserva), a polícia geral, a polícia especial, a polícia secreta, os altos administradores nos departamentos governamentais (os serventuários-chave dos serviços, os corpos de segurança nacional, os juízes, etc.) -todos quantos estão livres da influência do sufrágio universal.
Este poder executivo está a ser constantemente reforçado. À medida que aparece o sufrágio universal e se vai desenvolvendo uma certa democratização, aliás completamente formal, de determinadas instituições representativas, verifica-se que o poder efetivo e real desloca-se dentro dessas instituições para outras que estão cada vez mais afastadas da in- fluência do Parlamento.
Se o rei e os seus funcionários perdem uma série de direitos em favor do Parlamento durante a fase ascendente do parlamentarismo (que principia na obtenção do sufrágio universal), o Parlamento perde uma série contínua de direitos que revertem para as administrações do Estado, permanentes e inamovíveis. E o fen6meno geral na Europa Ocidental. A actual Quinta República Francesa é presentemente o exemplo mais chocante e completo deste fenômeno.
Deveremos considerar esta viragem, esta inversão, como conspiração diabólica contra o sufrágio universal, feita pelos capitalistas?
Estamos em presença de uma realidade objectiva mais profunda: os poderes reais são transferidos do legislativo para o executivo; o poder do executivo é reforçado de maneira permanente e contínua, como resultado de mudanças que também se dão dentro da própria classe capitalista. Este processo começou nos tempos da Primeira Guerra Mundial na maioria dos países beligerantes e desde então tem continuado ininterruptamente.
Mas este fen6meno existiu muitas vezes antes desse tempo. Assim, no Império Alemão, esta prioridade do executivo sobre o legislativo apareceu ao mesmo tempo que o sufrágio universal. Bismark e os Junkers concederam o sufrágio universal para empregarem a classe operária, até certo ponto, como alaca contra a burguesia capitalista assegurando deste modo (naquela sociedade já essencialmente capitalista) a relativa independência do poder executivo exercido pela nobreza prussiana.
Este processo mostra perfeitamente que a igualdade política é mais aparente do que real e que o direito do cidadão ao voto não passa de um mero direito de meter um pedacinho de papel na caixa da assembléia de votos, de tantos em tantos anos. O direito não vai mais longe, nem (sobretudo) alcança os centros reais onde se tomam as decisões e se exerce o poder.
Os monopólios apoderam-se do Parlamento
A época clássica do parlamentarismo foi a da livre concorrência. Naqueles tempos, o burguês individual, o industrial, o banqueiro, eram muito fortes como indivíduos. Eram muito independentes, muito livres, dentro dos limites da liberdade burguesa, e podiam arriscar o seu capital no mercado da maneira que desejassem.
Naquela sociedade burguesa atomizada, o Parlamento desempenhou um papel muito útil, objectivo, e até indispensável ao funcionamento tranquilo dos assuntos quotidianos.
De facto, era só no Parlamento que o denominador comum dos interesses da burguesia se podia determinar. Podiam organizar-se dúzias de grupos capitalistas, separados uns dos outros, grupos opostos a outro qualquer por uma quantidade de interesses locais, regionais e corporativos. Estes grupos só podiam unir-se de forma ordenada no Parlamento. (É verdade que também se podiam encontrar no mercado, mas aí era à navalha e não com palavras!). Foi só no Parlamento que uma linha média pôde ser estabelecida, linha de tal ordem que pudesse exprimir os interesses da classe capitalista como um todo.
Porque então era esta a função do Parlamento: servir de lugar comum de reunião onde os interesses colectivos da burguesia pudessem ser formulados. lembremos que, na época heróica do parlamentarismo, não era só com palavras e votos que o interesse colectivo se manifestava; também usavam os punhos e as pistolas. Não mandou a Convenção milhares de cidadãos à guilhotina, pela mais ínfima das maiorias, essa Convenção, clássico Parlamento burguês da Revolução Francesa?
Mas a sociedade capitalista não permaneceria atomizada. Pouco a pouco, pôde ver-se a organizar- se, a estruturar-se, em concentrações cada vez maiores, de forma cada vez mais centralizada. A livre concorrência desaparece e é substituída por monopólios, por trusts e por grupos capitalistas.
O Parlamento e, mais ainda, o governo de um Estado capitalista, por mais democrático que pareça ser, está atado à burguesia por cadeias doiradas que tomam o nome de dívida pública.
Nenhum governo poderia durar mais de um mês sem bater à porta dos bancos para pagar assuas despesas correntes. Se os bancos se recusassem, o governo abriria falência.
São duplas as origens deste fenômeno. Os impostos não entram diariamente nos cofres; as receitas concentram-se em certos períodos do ano mas as despesas são contínuas. É deste modo que surge a dívida pública a curto prazo.
Este problema não é de solução difícil, mas surge ainda outro problema, muitíssimo mais grave. Todos os modernos Estados capitalistas gastam mais do que recebem. Eis a origem da dívida pública a longo prazo para a qual os bancos e estabelecimentos financeiros adiantam dinheiro a juros elevados. Aqui está uma conexão direta e imediata, um laço diário, entre o Estado e a Alta Finança.
A hierarquia no aparelho de Estado…
Outras cadeias do iradas, cadeias invisíveis, fazem do aparelho de Estado um instrumento nas mãos da burguesia.
Se examinarmos, por exemplo, o método de recrutamento do funcionalismo público, veremos que para ser um empregado de um ministério, é preciso passar num exame. De facto, esta regra parece ser muito democrática. Por outro lado, ninguém pode submeter-se a exame para qual quer nível de emprego. O exame não é o mesmo para o cargo de secretário geral de um ministério, ou de chefe do estado-maior do exército, ou de terceiro oficial de uma pequena repartição governamental. Também, à primeira vista, parece ser absolutamente normal. Mas – e eis aqui um grande mas – há uma progressão nestes exames que Ihes confere caráter seletivo. O candidato tem de possuir certos diplomas, teve de seguir certos cursos para se candidatar a certas posições, especialmente às mais importantes. Um tal sistema exclui vasto número de pessoas que não puderam obter instrução universitária ou equivalente, porque uma igualdade de oportunidades de instrução não existe na realidade. Ainda que o sistema de exame para cargos públicos seja democrático superficialmente, não deixa de ser um instrumento selecionador.
…é um espelho da hierarquia na sociedade capitalista
Estas invisíveis cadeias doiradas encontram-se ainda na remuneração que auferem os membros do aparelho de Estado.
Todas as agências governativas, incluindo o exército, apresentam um aspecto de pirâmide, a estrutura hierárquica, que caracteriza a sociedade burguesa. Estamos tão influenciados e embebidos pela ideologia da classe dominante que temos a tendência para não ver nada de anormal no facto de um secretário geral de um ministério receber um ordenado dez vezes superior ao do aspirante no mesmo ministério ou da mulher que limpa os escritórios. O esforço físico desta mulher é por certo maior, o que, como todos sabem, é muito mais cansativo, mas o secretário geral do ministério pensa. De igual modo, o ordenado do chefe do estado-maior (mais outro que pensa.) é muito maior que o do soldado.
Esta estrutura leva-nos a pôr em destaque a existência de secretários gerais, generais, bispos, etc, com o mesmo nível de ordenado e, portanto, com o mesmo nível de vida, idêntico ao da grande burguesia, de modo que participam do mesmo clima social e ideológico. Vêm depois os funcionários médios, oficiais no meio da escala, com o mesmo nível social e com o mesmo rendimento da pequena e média burguesia. Por fim, a massa dos empregados sem títulos, mulheres de limpeza, contínuos e serventes, que muitas vezes ganham menos que os operários fabris. É claro que o seu nível de vida corresponde ao do proletariado.
Portanto, o aparelho de Estado não é um instrumento homogêneo: compreende uma estrutura que corresponde de perto à estrutura da sociedade burguesa, isto é, com uma hierarquia de classes e diferenças idênticas entre si.
A estrutura em pirâmide corresponde às necessidades reais da burguesia. Ela quer ter à sua disposição um instrumento que possa manipular à vontade. É óbvia a razão por que a burguesia tem andado a procurar há muito tempo, e com estranha vivacidade, negar aos trabalhadores dos serviços públicos o direito à greve.
Será o Estado um simples árbitro?
Este ponto é importante. No próprio conceito do Estado burguês – independentemente de ser mais ou menos democrático na forma – existe uma premissa fundamental que se liga sobretudo à própria origem do Estado: pela sua natureza, o Estado está em contradição, ou antes, inadaptado às necessidades da colectividade. Por definição, o Estado é um grupo de homens que exercem as funções praticadas, antigamente, por todos os membros da colectividade. Estes homens não fazem um trabalho produtivo mas são mantidos pelos outros membros da sociedade.
Em tempos normais, não há muita necessidade de cães de guarda. Em Moscou, por exemplo, não há vendedores de bilhetes nos autocarros: os passageiros depositam o dinheiro no respectivo receptáculo, quer haja ou não quem esteja de vigia. Mas nem sempre é assim: na sociedade em que é baixo o nível de desenvolvimento das forças produtivas, onde todos travam uma luta árdua com os restantes para obter o suficiente para viver, tirado de um rendimento nacional demasiado baixo para ser distribuído, torna-se necessária uma forte engrenagem de fiscalização.
Assim, durante a ocupação alemã da Bélgica, proliferaram serviços especializados de fiscalização (polícia especial nas estações ferroviárias, fiscalização de tipografias, de racionamento, etc.). Em tempos como esse, a área de conflito é tal que se torna : indispensável uma imponente engrenagem fiscalizadora.
Se pensarmos um pouco sobre o problema, poderemos ver que todos quantos exerçam funções do Estado e pertençam à sua engrenagem, são – de um ou de outro modo – cães-de-guarda. São cães-de-guarda a polícia vulgar e a especial, bem como os recebedores de impostos, os juízes, os arranha-papéis das repartições governamentais, os cobradores dos meios de transporte, etc. Em suma, todas as funções governativas reduzem-se a isto: vigilância e controle da vida da sociedade, no interesse da classe dominante.
Muitas vezes diz-se que o Estado contemporâneo desempenha o papel de árbitro. Esta afirmação não altera nada ao que acabamos de dizer: “fiscalização” e “arbitragem” não serão, basicamente, a mesma coisa?
Há que fazer dois comentários. Primeiro: o árbitro não é neutro. Como atrás explicamos, os homens importantes do aparelho governativo são parte e parcela da grande burguesia. Assim, a arbitragem não se dá no vácuo: dá-se na estrutura que mantém a sociedade existente de classes. Sem dúvida que podem ser feitas pelos árbitros concessões aos exploradores; isso depende essencialmente da relação de forças. Mas o objectivo básico da arbitragem é manter a exploração capitalista como tal, transigindo um pouco em assuntos secundários, no, caso de ser preciso.
O Estado cão-de-guarda é testemunha da pobreza da sociedade.
Segundo comentário: o Estado é uma entidade criada pela sociedade para fiscalização do funcionamento diário da vida social; está ao serviço da classe dominante, com o fim de manter o seu domínio. Existe uma necessidade objectiva para esta organização-cão-de-guarda, uma necessidade muito intimamente ligada ao grau de pobreza, ao grau de conflito social que existe na sociedade.
De um modo geral e histórico, o exercício das funções do Estado está intimamente ligado à existência de conflitos sociais. Por sua vez, estes conflitos sociais estão intimamente ligados à existência de certa escassez de bens materiais, de recursos, de meios necessários para a satisfação das necessidades humanas.
Este facto tem que ser sublinhado: enquanto existir o Estado, será ele a prova de que há conflitos sociais, (portanto, uma relativa escassez de bens e serviços). Desaparecendo os conflitos sociais, desaparecerão os cães-de-guarda, por inúteis e parasitas, – mas nunca antes disso!
Com efeito, a sociedade paga a esses homens para exercerem funções de vigilância, enquanto esta vigilância for do interesse de uma parte da sociedade. Mas é perfeitamente evidente que, não havendo nenhum grupo na sociedade que esteja em perigo, para que tenha de se exercer a função dos cães-de-guarda, a função desaparecerá logo por inútil. E, ao mesmo tempo, desaparecerá o próprio Estado.
O próprio facto da sobrevivência do Estado prova que permanecem os conflitos sociais, bem como a relativa escassez de bens – marca de contraste daquele vasto período na história humana entre a pobreza absoluta (condição durante o primitivo comunismo) e a abundância (condição da futura sociedade socialista).
Enquanto estivermos neste período de transição que abrange dez mil anos da história humana, período que também inclui a transição entre o capitalismo e socialismo, o Estado há-de sobreviver, continuarão os conflitos sociais e terá de haver gente a arbitrar estes conflitos, tudo no interesse da classe dominante, e nada mais.
O facto de o Estado burguês permanecer, fundamentalmente, ao serviço da classe dominante, quererá significar que os operários devem ficar indiferentes à forma particular que tome o Estado: parlamentar, democrático, ditadura militar, ditadura fascista?
De modo nenhum! Quanto mais liberdade tiverem os operários na sua organização e na defesa das suas ideias, tanto mais se desenvolverão dentro da sociedade capitalista as sementes da futura democracia socialista e tanto mais facilmente terá, historicamente, o advento do socialismo. Por isso, devem os operários defender os seus direitos democráticos contra todas as tentativas de os reduzir (leis anti-greves, instituição de um “Estado forte”) ou de os esmagar (fascismo).
O PROLETARIADO NO PODER
O que dissemos serve para responder a algumas perguntas que se levantam sobre o Estado e o Socialismo.
Precisará a classe operária de um Estado?
Quando dizemos que o Estado existirá ainda, mesmo na sociedade de transição entre capitalismo e socialismo, surge a pergunta sobre se a classe operária ainda necessitará do Estado quando alcançar o poder.
Não poderia esta classe, ao tomar o poder, abolir o Estado de um dia para o outro? A História já respondeu a esta pergunta. Por certo, teoricamente, a classe operária podia abolir o Estado. Contudo, seria isso apenas um ato formal, jurídico, uma vez que os operários não se apoderavam do poder numa sociedade já tão rica e com tal abundância de bens materiais e serviços que os conflitos sociais como tais, isto é, centrados na distribuição desses produtos, tivessem desaparecido; e que a necessidade de árbitros, de cães-de-guarda e polícia que dominassem todo aquele caos, desaparecesse ao mesmo tempo que a relativa escassez de bens. Tal facto nunca aconteceu e não é provável que venha a dar-se em qualquer tempo.
Se a classe operária tiver de tomar o poder num país em que exista ainda escassez de bens, embora parcial, ou exista certa pobreza, durante algum tempo esta sociedade não pode ainda funcionar sem um Estado. Continuarão a existir conflitos sociais.
O contrário é o recurso a uma atitude hipócrita, como fazem certos anarquistas: destruamos o Estado e demos outro nome às pessoas que exerçam as funções governamentais. Mas isso é só uma pura operação verbal e nada mais. É a “abolição” do Estado apenas no papel. Enquanto os conflitos sociais existirem, haverá uma real necessidade de alguém que regule esses conflitos. Ora, as pessoas que regulam conflitos equivalem a Estado. Para a humanidade, é impossível regular conflitos coletivamente, numa situação de desigualdade real, ou de real incapacidade, para satisfazer as necessidades de cada um.
Igualdade na pobreza
Pode surgir uma objecção, embora seja algo absurda e não haja muitos que possam apresentá-la.
Pode imaginar-se uma sociedade em que a abolição do Estado esteja ligada à redução das necessidades humanas, numa tal sociedade, pode-se estabelecer uma perfeita igualdade que, certamente, não será outra a não ser a igualdade na pobreza. Assim, se a classe operária tivesse de tomar amanhã o poder na Bélgica, todos passariam a ter pão e manteiga – e talvez mais alguma coisa.
Mas é impossível negar artificialmente as necessidades humanas criadas pelo desenvolvimento das forças produtivas – necessidades aparecidas como resultado de a sociedade ter alcançado um certo nível de desenvolvimento. Quando a produção de um nível total de bens e de serviços não for suficiente para cobrir as necessidades de todos, banir tais bens e serviços será sempre ineficaz. Um tal banimento apenas criaria condições ideais para o mercado negro e para a produção ilegal desses artigos.
Assim, todas as seitas comunistas, durante a Idade Média, e nos tempos modernos, pensavam organizar imediatamente a perfeita sociedade comunista, baseada na perfeita igualdade dos seus membros, proibindo a produção de artigos de luxo, de artigos para conforto corrente -incluindo a tipografia! Todas estas tentativas falharam. E falharam porque a natureza humana é tal que, quando o ser humano se dá conta de certas necessidades, estas não podem ser reprimidas artificialmente. Savonarola (9), ao pregar o arrependimento e a abstinência, atacou o luxo e pediu que fossem queimadas todas as pinturas; mas, com tudo isso, não teria sido capaz de evitar que um ou outro incorrigível amante da beleza, pintasse em segredo. E então, o problema da distribuição de tais produtos “ilegais”, que se tornariam mais escassos do que antes, levantar-se-ia de novo – inevitavelmente.
O Jogo do Proletariado
Outra razão, embora menos importante, tem de se acrescentar ao que dissemos no princípio deste capítulo.
Quando o proletariado alcança o poder, é em condições muito especiais, diferentes da tomada do poder por qualquer outra classe social. No decurso da história quando todas as outras classes sociais tomaram o poder, já tinham na mão o poder efetivo da sociedade: econômico, intelectual e moral.
Não há um único exemplo, antes do nosso exemplo do proletariado, de uma classe social chegar ao poder quando ainda oprimida sob os pontos de vista econômico, intelectual e moral. Por outros termos: postular que o proletariado possa tomar o poder é uma espécie de jogo, porque, coletivamente, como classe num sistema capitalista, este mesmo proletariado está esmagado, está impossibilitado de um completo desenvolvimento do seu potencial criativo. Não se podem desenvolver completamente as capacidades intelectuais e morais quando se é obrigado a trabalhar oito, nove ou dez horas por dia na oficina, na fábrica ou no escritório. E tal é ainda hoje a condição do proletariado.
Resulta que o poder da classe operária, quando o alcançar, é vulnerável. Em muitos setores o poder do proletariado tem de ser defendido de uma minoria que continuará, durante todo um período histórico de transição, a gozar de enormes vantagens no domínio intelectual e com largas posses materiais – pelo menos das suas reservas de bens de consumo – relativamente à classe operária.
A revolução socialista expropria a grande burguesia, como detentora dos meios de produção; mas não arrebata aos detentores burgueses as suas posses acumuladas, nem os seus diplomas. Menos ainda pode expropriar-lhes o cérebro e o conhecimento. Durante todo o período que precedeu a tomada do poder pelo proletariado, foi a burguesia que teve o quase exclusivo monopólio da instrução.
Assim, numa sociedade em que o proletariado obteve o poder por algum tempo (poder político, poder de homens armados, seja como for), muitas alavancas do poder efetivo estão e permanecerão nas mãos da burguesia – mais exatamente, nas mãos de uma parte da burguesia a que se pode muito bem chamar “intelligentsia”, ou burguesia intelectual e tecnológica.
Poder operário e técnicos burgueses
Sobre este assunto, Lenin teve algumas experiências amargas. De facto, pode provar-se que, de qualquer ângulo de que o problema seja encarado, sejam quais forem as leis, os decretos promulgados, as instituições estabelecidas, se houver necessidade de professores, de funcionários de alto nível, de engenheiros, de pessoal técnico de grande treino, em todos os níveis do maquinismo social, é muito difícil colocar de um momento para o outro, proletários nessas posições – nem mesmo antes de cinco ou seis anos, ou mais, após a conquista do poder. Durante os primeiros anos do poder Soviético, Lenin, armado de uma fórmula teoricamente correta, mas levemente incompleta, dizia: “hoje os engenheiros trabalham para a burguesia; amanhã trabalharão para o proletariado; para isso serão pagos e, se necessário, serão forçados a trabalhar. O que importa é que sejam fiscalizados pelos operários”.
Mas, alguns anos depois, pouco antes da sua morte, Lenin, ao fazer o balanço daquela experiência, perguntava para si próprio: Mas quem controla? Serão os peritos controlados pelos comunistas ou será o contrário?
Quando abordamos esta pergunta, dia após dia, em termos concretos e pensamos nos países subdesenvolvidos, e vemos o que significa na prática um país como a Argélia, compreendemos perfeitamente que se trata de um problema fácil de resolver sobre o papel, com algumas fórmulas mágicas, mas dá-se completamente o contrário quando o problema tenha de se resolver num país real e na vida real.
Em países como a Argélia; por exemplo, significa um controle perfeito: o privilégio da instrução universitária (ou de qualquer ilustração) é apanágio de uma infinitésima minoria da sociedade, ao passo que a grande massa do povo que combateu heroicamente para obter a independência, encontrou-se, quando chegou o momento de assumir o poder, perante uma total carência de conhecimentos que só agora irá principiar a obter. A mais heróica experiência neste domínio, a mais radical e mais revolucionária em toda a História humana, foi a empreendida pela revolução Cubana. Tirando lições de todas as variadas experiências do passado, a revolução Cubana empreendeu resolver este problema, em larga escala, e no mínimo espaço de tempo, por meio de uma extraordinária campanha de instrução (10), para transformar dezenas de milhares de operários e camponeses analfabetos em outros tantos mestres, professores e estudantes universitários – e num tempo mínimo. Ao fim de cinco ou de seis anos de trabalho, os resultados obtidos foram consideráveis.
Contudo, um simples engenheiro, ou simples agrônomo, num distrito com dezenas de milhares de operários, pode, na prática, tornar-se patrão do distrito, a despeito do admirável espírito revolucionário do povo cubano, se tiver o monopólio do conhecimento técnico que seja vital para esse distrito.
Mais uma vez, a falsa solução seria uma transformação a nível tão simples que os técnicos não fossem precisos. Mas esta é uma utopia reacionária.
O Estado como guarda do poder operário
Todas estas dificuldades indicam a necessidade que tem o proletariado, como nova classe dominante, de exercer o poder de Estado contra todos quantos possam arrebatar-lhe o poder, pouco a pouco, ou de uma só vez. É nesta nova sociedade de transição, em que o proletariado possui o poder político e as principais alavancas do poder econômico, mas em que defronta uma constelação de fraquezas e de inimigos recém-criados, que tem de ser exercido o poder de Estado. E uma situação que torna necessário manter o Estado após a conquista do poder, e que torna impossível abolir esse Estado repentinamente, mas é evidente que este Estado operário tem que ser de tipo especial.
Natureza e características do Estado operário
O proletariado, pela sua posição especial na sociedade, será obrigado a manter o Estado. Mas, para preservar o poder desse Estado, tem de ser radicalmente diferente do Estado que sustentava antes o poder da burguesia ou da classe feudal e escravizadora. O Estado operário é, ao mesmo tempo, um Estado, e não o é. Cada vez mais se torna em menos Estado. É um Estado que começa a extinguir-se, a deperecer, no próprio momento em que nasceu, como foi dito corretamente por Marx e Lenin.
Marx, ao desenvolver a teoria do Estado operário, da ditadura do proletariado, como lhe chamou, deu-lhe também várias características, exemplos dos que se encontraram na Comuna de Paris em 1871. São três as características essenciais:
1) Não há uma separação nítida entre o poder executivo e o legislativo.
Há necessidade de um órgão que promulgue as leis e ao mesmo tempo as faça cumprir. Em resumo, é preciso voltar ao Estado que nasceu do primitivo comunismo do clã e da tribo e que se podia ainda encontrar na antiga assembléia dos Atenienses.
Isto é importante. É o melhor caminho para reduzir, tanto quanto possível, a separação entre o poder efetivo, cada vez mais concentrado nas mãos de um órgão permanente, e o poder crescentemente fictício do parlamentarismo burguês. Não basta substituir uma assembléia deliberativa por outra, se nada de essencial for mudado com respeito àquela separação. As assembléias deliberativas devem dispôr de efetivo poder executivo nas suas mãos.
2) Os cargos públicos devem ser eletivos na máxima extensão.
Não só os membros das assembléias deliberativas devem ser eleitos. Juízes, funcionários de alto nível, oficiais da milícia, inspetores de instrução, dirigentes das obras públicas, têm de ser todos eleitos. Isto poderá ser algo chocante em países com tradições napoleônicas ultra-reacionárias. Mas certas democracias especificamente burguesas, por exemplo os Estados Unidos, a Suíça, o Canadá, a Austrália, conservaram o caráter eletivo de certo número de funções públicas. É assim que nos Estados Unidos o chefe da polícia é eleito pelo seus concidadãos.
No Estado operário, a eleição de oficiais públicos deve ser acompanhada em todos os casos pelo direito de revogabilidade ou demissão, isto é, os oficiais que não dêem boa conta de si, podem ser , imediatamente demitidos em qualquer ocasião.
Assim, será possível um controle permanente e extensivo por parte do povo sobre os que exercem funções públicas; e a separação entre os que exercem o poder e aqueles em cujo nome é exercido, será tão pequena quanto possível. Será por isso necessário assegurar uma constante mudança das pessoas eleitas, para evitar permanências nos cargos infinitamente. As funções de Estado devem ser exercidas, em escala sempre crescente, pelas massas como um todo.
3) Não pode haver ordenados elevados
Nenhum funcionário, nenhum membro dos órgãos representativos e legislativos, nenhum indivíduo que exerça poder governativo, deve receber um ordenado superior ao de um operário especializado.
É o único método válido de evitar que haja quem procure cargos públicos com o intuito de viver comodamente a sugar a sociedade, e também de evitar os caçadores de bons lugares e os parasitas bem conhecidos de todas as anteriores sociedades. Estas são regras que exprimem corretamente o pensamento de Marx e de Lenin sobre o Estado operário. Este já não se assemelha a nenhum Estado anterior, porque é o primeiro Estado que se vai extinguindo ao nascer; é um Estado cuja engrenagem é composta de pessoas sem qualquer privilégio em relação à massa da sociedade; as funções são, cada vez mais, exercidas pelos membros da sociedade como um todo e vão sendo substituídos uns pelos outros; não é um Estado constituído por um grupo de indivíduos destacados da massa, a exercerem funções separadas e à parte das massas, mas, pelo contrário, é indistinguível do povo e das massas trabalhadoras; é um Estado que se extinguirá quando desaparecerem as classes sociais, os conflitos sociais, a economia monetária, a produção mercantil, as mercadorias, e o dinheiro. Este deperecimento do Estado deve ser concebido como um governo dos próprios produtores e dos cidadãos, que se expande cada vez mais, até que, em condições de abundância material e de alto nível de cultura de toda a sociedade, esta se encontre estruturada em comunidades de produtores-consumidores que a si próprias se governem.
Que se passa na União Soviética?
Ao olhar para a história da URSS nos passados trinta anos, a conclusão a tirar quanto ao Estado é simples: um Estado com exército permanente, com marechais, diretores, empresas e até dramaturgos e bailarinas que ganham cinquenta vezes mais do que um operário manual ou uma empregada doméstica, um Estado em que se estabeleceu uma seleção para certas funções públicas, tornando o acesso a essas funções praticamente impossível para a vasta maioria da população; um Estado em que o poder efetivo é exercido por pequenas comissões de pessoas cujo cargo é renovado de modo misterioso e cujo poder continua fixo e permanente por largos períodos – tal Estado não é com certeza um Estado em deperecimento.
Por quê?
É simples a explicação. Na URSS o Estado não se extinguiu porque não desapareceram os conflitos sociais. E estes não desapareceram porque o grau de desenvolvimento das forças produtivas não o permitiu – porque a situação de meia escassez que caracteriza ainda os países capitalistas mais avançados, continua a existir na URSS. E, enquanto essa meia escassez existir, são necessários fiscais, cães-de-guarda, polícia especial.
Sem dúvida, num Estado operário, estes indivíduos servem uma causa melhor, pelo menos na proporção em que defendem uma economia socialista. Mas temos de reconhecer que estão separados do corpo social e que em larga medida são parasitas. O seu desaparecimento está condicionado ao nível de desenvolvimento das forças produtivas, único que pode permitir um termo aos conflitos sociais e abolir as funções que Ihes estão adstritas.
E, na medida em que estes cães-de-guarda, estes fiscais, cada vez mais monopolizam o exercício do poder político, nessa medida sem dúvida que eles poderão assegurar privilégios materiais crescentes e manjares escolhidos na relativa escassez que domina a distribuição. Constituem assim uma burocracia privilegiada, sem o controle efetivo dos operários, pronta a defender, antes de mais (e sobretudo), os seus próprios privilégios.
O argumento do “cordão sanitário”(11)
Os perigos resultantes de estarem cercados pelo capitalismo são constantemente citados pelos que põem objecções às críticas apontadas. O argumento é este: enquanto existir um perigo externo, o Estado será necessário, como dizia Stalin, mesmo que se trate apenas de defender o país das hostilidades que o cercam.
Este argumento baseia-se num equívoco. A existência de um cerco capitalista ameaçador só pode provar a necessidade de armamento e de instituições militares, mas não justifica que estas instituições fiquem separadas do corpo social. A existência de tais instituições militares, separadas da sociedade como um todo, indica que dentro dela permanece uma quantidade substancial de tensões sociais que impedem o governo de armar o próprio povo e que assustam os chefes que não podem confiar no povo para resolver os problemas militares de autodefesa, e segundo a sua maneira.
O povo seria capaz de o fazer se a colectividade tivesse realmente o grau de superioridade que uma sociedade realmente socialista deve ter, em relação à sociedade capitalista.
Na realidade, o problema do cerco externo é só um aspecto secundário de um fenômeno muito mais geral: o nível de desenvolvimento das forças produtivas, a maturidade econômica do país, estão muito longe do nível que deveriam ter numa sociedade socialista.
A União Soviética tem continuado a ser uma sociedade de transição cujo nível de desenvolvimento das forças produtivas é comparável ao de uma sociedade capitalista avançada. Tem, pois, de combater com armas comparáveis.
Não tendo eliminado os conflitos sociais, a URSS teve de manter todos os órgãos de controle de vigilância da população e, por isso, teve de manter – e até de reforçar – o Estado, em vez de permitir o seu deperecimento. Por numerosas razões específicas, produziram-se deformações e degenerescências burocráticas nesta sociedade de transição, as quais têm provocado grave preju ízo à causa do socialismo, especialmente porque a etiqueta “socialismo” foi atribuída à sociedade Soviética com medo de dizer a verdade: “Somos ainda demasiado pobres e demasiado atrasados para podermos criar uma verdadeira sociedade socialista”.
Na medida em que se pretendeu usar a etiqueta “socialista”, a todo o custo, para fins de propaganda, pode ser explicada a existência de coisas como purgas “socialistas”, campos de concentração “socialistas”, direitos das minorias nacionais, etc., etc.
Garantias contra a burocracia
Que garantias poderão ser introduzidas no futuro para evitar o crescimento anormal da burocracia que surgiu na URSS?
1) Respeitar escrupulosamente as regras já mencionadas, respeitantes ao começo da extinção do Estado operário (em particular a limitação de ordenados a todos os funcionários -econômicos e políticos).
2) Respeitar escrupulosamente o caráter da gestão econômica: comissões de auto-gestão operária, eleitas pelos operários nas empresas; congresso de produtores (“Senado Econômico”), eleito por essas comissões. Em última análise, os que controlam o sobre produto social devem controlar toda a sociedade.
3) Respeitar escrupulosamente o princípio de que o Estado operário que tem necessidade de restringir as liberdades políticas de todos os inimigos de classe que se opõem ao advento do socialismo (restrição que deve ser proporcional à violência e à resistência oferecidas), deve, ao mesmo tempo, alargar aquelas liberdades a todos os operários: liberdade para todos os partidos que respeitem a legalidade socialista; liberdade de imprensa para todos os jornais que respeitam essa legalidade; liberdade de reunião e de associação – sem qualquer restrição; independência real dos sindicatos em relação ao Estado; direito de greve reconhecido.
4) Respeitar o caráter democrático e público de todas as assembléias deliberativas e a sua completa liberdade de debate.
5) Respeitar o princípio de uma lei escrita.
Teoria e prática
A teoria marxista sobre o deperecimento do Estado tem sido completamente desenvolvida durante mais de meio século. Na Bélgica só há um pequeno pormenor que falta, uma pequena coisa que ainda não foi feita – pôr a teoria em prática.
Notas:
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La fin tragique des Bushem: Paris, Amiot-Dumont, 1953. pp.70-73.
I. Shapexa. The Khoisan Peoples of South Africa: Georges Routledge and Sons, 1930. p.76.
A. Moret e G. Davy. Des clans aux Empires: Paris Reinaissance du Livre, 1923. p.17.
Anedota do vaso de Soissons. A lenda narra um incidente do reinado do Clovis entre os Francos no Século V da nossa Era ( Clovis foi o primeiro franco a aceitar o cristianismo e, durante o seu reinado , a maior parte da Bélgica e da França foi unida num reino). Depois da vitória de Soissons (486), quando dividiam o espólio igualmente entre todos os soldados , Clovis quis guardar para si um certo vaso . Um soldado saiu da fileira e esmigalhou o vaso com a espada para mostrar que nenhum combatente tinha direito a qualquer privilégio especial na partilha do espólio.
Doutrinária. Chamaram doutrinários aos membros da ala conservadora do Partido Liberal da Bélgica no século XIX. Opunham-se violentamente ao sufrágio universal, ao passo que os chamados Progressistas do Partido Liberal estavam prontos a aceitar esse sufrágio.
Analítico. Equivalente na Bélgica ao Arquivo do Congresso Norte-Americano. Uma espécie de Diário das Sessões em Portugal.
Sociedade Geral. O mais importante grupo capitalista da Bélgica desde a sua independência em 1830. Originariamente organizado sob forma de banco comercial, foi precursor do “capital financeiro” que veio a generalizar-se noutros países capitalistas, só no último Quartel do século XIX. Este grupo resultou da posse pela Sociedade de interesses dominadores sobre muitas companhias por ações , em especial de carvão e aço. Mais tarde passou a denominar a União Mineira do Alto Katanga, assim como muitas outras companhias do Congo.
Brufina. O segundo maior grupo capitalista da Bélgica, nascido do Banco de Bruxelas, o segundo banco belga.
Savonarola (1452-1458). Reformador religioso italiano e chefe de massas que atacou a corrupção e o vício em sermões ardentes. Caiu na inimizade do Papa Alexandre VI, devido a Ter desvendado escândalos na corte pontifícia, que tornou públicos. Acusado como herege, foi queimado no cadafalso em Florença.
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A delegação cubana à Conferência sobre Instrução e Desenvolvimento Econômico, realizado em Santiago do Chile, em março de 1962, declarou o seguinte: “Para se comparar a eficiência dos métodos cubanos com relação aos adotados pela Conferência, bastará notar que os autores da chamada “Aliança para o Progresso” ofereceram um empréstimo de 150 milhões de dólares por ano a 19 países com uma população de 200 milhões, ao passo que um simples país – Cuba – com 7 milhões de habitantes, aumentou o seu orçamento de instrução e cultura, gastando 200 milhões por ano, sem Ter que pagar juros fosse a quem fosse.
Só durante a ano de 1961, 707000 adultos aprenderam a ler e a escrever em Cuba, cujo analfabetismo baixou para 3,9 %.
Para 1961- 1964, cuba estabeleceu os seguintes objetivos no domínio da instrução:
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passar os que recentemente aprenderam a ler e a escrever para o nível médio da instrução primária;
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completar a instrução primária de meio milhão de operários que só tenham três anos de escola elementar;
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assegurar a instrução secundária básica a 40000 operários que completaram a instrução primária.
11) “Cordão Sanitário”. Quando já no nosso século, surgia uma doença grave e contagiosa em qualquer cidade, estabelecia-se um cerco militar para não permitir entradas nem saídas de pessoas e dava-se a este cerco o nome de “cordão sanitário” . A Rússia Soviética foi também cercada por tropas estrangeiras e seus aliados na Primeira Guerra Mundial, privada de relações comerciais, diplomáticas e culturais com o resto do mundo. Foi uma época de tremendas privações para a Rússia. O mesmo se dá com Cuba, bloqueada pelos Estados Unidos, econômica e efetivamente, com o fim de evitar “infecções”.
Fonte: MANDEL, Ernest. Teoria Marxista do Estado. Lisboa: Edições Antídoto, 1977. pp. 9-46.