Intervenção de Heitor de Sousa na sessão de homenagem a José Carvalho, 9 novembro 2019.
Não tenho ideia precisa do momento em que conheci o Zé da Messa, mas tenho bem presente as circunstâncias em que isso aconteceu: deve ter sido algures pelos dias 12 ou 13 de março de 1975, à luz das velas, numa daquelas noites em que muitos de nós acampávamos no velho palácio da Rua da Palma, que a organização local de Lisboa da LCI tinha decidido ocupar para sede do partido.
Cheguei a Lisboa no fim do dia 12 de março de 1975 e, lembro-me, que a minha primeira morada onde me dirigi, vindo do Porto, foi mesmo o velho palácio da Rua da Palma, 268, bem visível por duas grandes palmeiras na sua frente de rua. Aí chegado, juntei-me a várias dezenas de jovens militantes e simpatizantes que ali se juntaram dias e noites seguidos a guardar a futura sede contra algumas ameaças de desalojamento, que aconteceram nos dias seguintes e algumas semanas.
Fosse por causa da luz fraquinha das muitas velas que iluminavam os salões e divisões do palácio, fosse porque a ocupação foi pretexto para um grande e diversificado convívio, a verdade é que só comecei a conhecer realmente o Zé Carvalho quando fui destacado para integrar a célula da LCI da Venda Nova/Amadora.
A célula da LCI da Venda Nova era verdadeiramente um Grupo de Militantes Especiais, comandado pelo c. Amadeu – camarada de poucas conversas mas de muita ação – e que tinha a responsabilidade de desenvolver a rede de militantes e simpatizantes, sobretudo em meio operário, que era o território por excelência daquela zona onde queríamos existir. O Zé era operário na Messa/Mem-Martins – a maior fábrica do concelho de Sintra, na altura com 1.700 trabalhadores – e, mesmo antes de ir para a tropa, já era um jovem ativista reconhecido na empresa. Mas, quando cheguei à célula, o Zé da Messa só participava de vez em quando nas atividades porque estava na tropa.
E foram precisamente as questões ligadas à tropa que me uniram em particular ao Zé da Messa. Não porque, em linguagem cifrada e clandestina da altura, a expressão “maquinas de escrever” tinha um significado diverso do que se pode ler num dicionário de língua portuguesa, mas porque o Zé foi um dos primeiros pilares do ativismo antimilitarista que a LCI, em plena primavera quente, decidiu desenvolver dentro das próprias Forças Armadas.
O antimilitarismo, no entendimento da então LCI, estava centrado na luta contra a hierarquia militarista reacionária que dominava as cadeias de comando das Forças Armadas, em especial o Conselho da Revolução, mas sobretudo na luta pelos direitos dos soldados e marinheiros, incluindo o direito à sua própria auto-organização, em Comités de Soldados.
Expressão dessa postura antimilitarista começou por ser visível logo na primeira campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte em abril de 1975. A LCI foi o primeiro partido a ver os seus Tempos de Antena censurados pelo Conselho da Revolução e, formalmente, pelo Governo Provisório, pois fizemos um Tempo de Antena, gravado em direto, nos estúdios do Lumiar em Lisboa, onde eu e o Ferreira Fernandes (…) atacámos a componente da hierarquia militarista mais reacionária, representava por Jaime Neves e Pires Veloso, defendendo ao mesmo tempo os direitos dos soldados e marinheiros de eleger os seus comandantes e de se poderem auto-organizar para lutarem pelos seus direitos.
Num país que atravessava um período pré-revolucionário intenso e que tinha acabado de conquistar nas ruas todas as liberdades, esta atitude de censura da Junta Militar foi um sinal que a revolução, para ser vitoriosa, tinha forçosamente de separar águas e de derrotar os seus inimigos, mesmo dentro das Forças Armadas.
Exigia-se por isso, um trabalho político específico dentro das Forças Armadas. Consequentemente, decidimos lançar uma frente de trabalho clandestina antimilitarista nas Forças Armadas, chamada Frente dos Soldados e Marinheiros Revolucionários, exclusivamente desenvolvida por militantes da LCI, entre os quais se contava o Zé da Messa.
Foi nesse âmbito que conheci muito de perto o Zé e que, juntamente com algumas dezenas de camaradas do partido, procurámos desenvolver a atividade antimilitarista nas diversas Regiões Militares onde havia camaradas para trabalhar, através de uma atividade panfletária específica, de que foi exemplo os 12 Boletins da FSMR, chamados a Caserna. Nesses boletins defendia-se coisas como a unidade entre operários e soldados na luta, o direito aos transportes gratuitos (sempre os transportes…), análises da situação política nacional e internacional, nomeadamente as relacionadas com movimentos de soldados, etc., tudo pelo preço simbólico de 1$.
O avanço do PREC e a intensificação da luta de classes no país e, em particular, nas Forças Armadas, onde o confronto entre a ala conservadora do regime em formação, a 5ª Divisão, muito colada ao PCP e ao governo provisório de Vasco Gonçalves, com objetivo de manipulação das FA para reforçar a sua influência política e, por fim, a ala mais radicalizada representada pelo COPCON mas com muitas contradições internas, tudo isto constituía um grande caldeirão de luta política, com sinais evidentes de desconstrução do aparelho hierárquico militarista.
É no contexto desse processo de desconstrução do aparelho militar e de aceleração do conflito social que, no fim do Verão de 75, a LCI está na origem do lançamento de um formidável movimento de soldados que incendiou todo o processo de contestação do militarismo dentro das Forças Armadas e reforçou enormemente a capacidade de auto-organização dos soldados em todo o país: os SUV – Soldados Unidos Vencerão.
De novo, o Zé esteve na primeira linha do lançamento dos SUV na sua unidade (na altura o RIQ), e também aí nos encontrámos – o Zé a correr por dentro e eu a correr por fora – para defendermos os caminhos que reforçassem a auto-organização dos soldados – Comissões de Soldados -, a democracia nos quartéis, a ligação ao poder popular fora dos quartéis, a expulsão dos oficiais reacionários e o reforço da luta anticapitalista comum com o povo e pelo poder dos trabalhadores. O livro que aqui trago – os SUV em Luta – é um repositório precioso do tempo e da ventania revolucionária que os SUV provocaram no país e, em especial, nas Forças Armadas.
Depois do Zé ter sido um dos muitos milhares de soldados expulsos das FA, na sequência do 25 de novembro, o Zé voltou à Messa e eu, enquanto funcionário da LCI, virei-me para o apoio ao trabalho sindical e operário. De novo o Zé.
Desta vez, para estender a intervenção sindical e operária do partido à Messa e aos metalúrgicos, setor, como se sabe, era quase “propriedade” do PCP. E para as lutas que o Zé desenvolveu na Messa para enfrentar o PC e fazer listas para a Comissão de Trabalhadores onde conseguimos entrar, primeiro em minoria, mas mais tarde com o Zé a ser um dos principais rostos da CT contra o encerramento da fábrica, facto que, infelizmente veio a acontecer em 1985.
É nessa mesma altura que o então PSR lança uma forte campanha pública contra o serviço militar obrigatório, intitulada “TROPA NÂO!”. E de novo o Zé na linha da frente.
Há muita documentação e memória dessa grande campanha que durou vários anos e que, mais tarde, veio a dar os resultados desejados que foi acabar com o SMO. É algo que nos congratulamos, embora não posso deixar de lamentar que o Zé não tenha estado connosco nesse regozijo.
Para terminar – Esta minha intervenção é uma homenagem ao Zé da Messa e à sua memória, particularmente ao rumo antimilitarista da luta política anticapitalista que o Zé sempre pugnou e que eu tive o prazer e a sorte de vivenciar. Obrigado Zé e até sempre.